Efeitos terapêuticos na clínica contemporânea


Comentário à conferencia de Serge Cottet . Rio de Janeiro 2003 .*
por Vera Nogueira





I
Serge Cottet, no livro “Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada” (2005), inicia questionando como ler hoje (2003) o texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", que Lacan escreveu há mais de 40 anos, em 1958, o "texto mais preciso e consistente" sobre como o psicanalista se orienta e a que ele visa em sua prática. E questiona também sobre os impasses da clínica e da prática da psicanálise na cultura contemporânea. 

Ele diz que Lacan, nessa época, se referia à psicanálise praticada à sua volta como um desvio, e que ele queria retificar essa orientação errônea.

Cottet diz que ao ler o texto hoje, se pergunta se "ainda é assim que os psicanalistas lacanianos praticam a psicanálise, sobretudo devido às transformações da demanda psicanalítica e da emergência de novos modos do sintoma".

A crítica de Lacan naquele momento era à técnica da sugestão e à manipulação da transferência, ao abuso de poder. Então, é porque ele situava a psicanálise assim praticada ainda sob o discurso do mestre.

Na época, a psicanálise estava sob a influência americana da Psicologia do ego (que visa reforço do eu, reeducação emocional, domínio do sujeito sobre seu inconsciente). A segunda corrente era a relação de objeto, inspirada nos pós-freudianos ligados a Karl Abraham e Melanie Klein (redução da psicanálise a uma psicogênese, a um desenvolvimento da libido). O ponto em comum dessas duas orientações é que se fundamentam na interpretação do imaginário da relação dual.

Segundo Cottet, nessa época de retorno de Lacan a Freud, ele retoma alguns princípios do freudismo. Então, é necessário comparar com um Lacan, como Cottet diz, mais autônomo em relação a esses princípios. 

Então, a atualização do texto de 1958 está em ver hoje limites que eram decorrentes da referência a Freud, mas que era uma referência necessária naquele momento para "distinguir uma psicologia da necessidade, ou do afetivo, da estrutura do desejo inconsciente, bem como orientar os tratamentos para a interpretação desse desejo, contra toda tentativa de reeducação" (p.12).

Por isso, no texto, Lacan constrói o binário desejo/demanda com um primeiro princípio de orientação: não responder à demanda. Essa construção de Lacan é importante para entender o silêncio do analista, que tem um valor de interpretação e nada tem a ver com uma passividade.

Cottet lembra que na época esse silêncio tinha o objetivo de frustrar o sujeito, provocando-lhe afetos como a agressão e a regressão, a ponto de o sujeito "bancar o bebê, tomando o analista por sua mamãe. A interpretação o transformaria em uma pessoa adulta."

Mas Lacan também critica essa frustração, situando-a no plano da linguagem, o que significa frustrar o sujeito de uma resposta à sua demanda. Cottet diz: "Lacan constrói a demanda, qualquer demanda pulsional, sobre a base de uma demanda de amor mascarado. O psicanalista não responde à demanda... a fim de que faça emergir o desejo esmagado por toda demanda"(p.13).


A partir desse primeiro princípio (não responder à demanda), essa posição de abstenção do analista vai permitir as manifestações transferenciais do desejo inconsciente. Cottet cita Lacan (“A direção do tratamento...” p.642): "é o desejo que mantém a análise fora dos efeitos da demanda". Não é o psicanalista que mantém a direção. Seguimos o vetor do desejo inconsciente em sua relação com o simbólico, em vez do imaginário (transferência, contratransferência).


"Assim, temos inicialmente a oposição desejo/demanda;em seguida, a oposição desejo inconsciente/resistência do eu e,por fim, o privilégio de um vetor, de um significante: a prevalência do significante falo significando o desejo” (p. 14).


Cottet diz que não vai se deter no assunto sobre o falo, mas lembra que Lacan o extraiu de um dos últimos textos de Freud: "Análise terminável e interminável" (1937), ou seja, do tropeço da castração”. Diz também que a "chave fálica deve resolver os enigmas dos sonhos, os impasses da sexualidade". Um dos exemplos citados é o da “bela açougueira” e seu caviar, em a “Interpretação dos sonhos” (1900) de Freud, e que Lacan comenta, além de em “A direção do tratamento...” (p. 627), também no cap. XX de “O seminário, livro 5: As formações do inconsciente” (1957-1958) .

Cottet continua apontando mudanças significativas desde 1958. E que a questão é saber se decorreram de uma lógica interna, de deslocamentos conceituais, ou se sob a pressão dos novos sintomas. Ele diz: "a própria doutrina antecipa a ascensão do objeto a ao zênite da civilização contemporânea, tomando o conceito de gozo, pouco a pouco, o lugar e a importância do Nome-do-Pai” (p. 16).
  
Diz Cottet, as mudanças nos dez anos seguintes a 1958 mostram um resto de toda operação interpretativa, de toda operação significante ou simbólica. “A esse resto, Lacan chamou objeto a, incluído no sintoma, um resto que não cede, tornando problemática uma distinção clara entre sintoma e fantasia. Quanto mais ele avança em sua teorização do sintoma, mais acentua sua dimensão de gozo”.

No decênio 1958-1968, Lacan formula outro binário: desejo/gozo. A categoria de gozo surge em 1964-65. Segundo Cottet, a clínica das perversões (o gozo voyeurista) permite a reconstrução da categoria pós-freudiana da pulsão de ver (p.18). Lacan separa o olho do olhar, que se separa do sujeito, sendo ele próprio olhado.

 Com essas considerações, introduz-se a categoria de objeto a causa de desejo, que logo depois passa a dizer respeito ao psicanalista. Cottet retoma a pág.645 dos “Escritos”, em que Lacan usa “palavras duras” em relação aos psicanalistas da época: "é abjeção psicanalítica o fato de o analista se tomar como objeto no fantasma do paciente, como objeto substancial"(p.18). A crítica ainda é válida, mas há uma dificuldade, ou seja, como ajustar a direção do tratamento, a de 1958, com o que foi posterior a 1964-65 e que faz do psicanalista um semblante de objeto, de um objeto que se opõe à mortificação do Outro simbólico? Na doutrina lacaniana estruturalista, o simbólico tem efeitos mortificantes, diz Cottet.

Ele explica que tradicionalmente, acredita-se que o Outro simbólico é melhor que o outro imaginário, o que é verdade dentro de certos limites. "Se o analista desempenha a função de morto, enfatiza excessivamente a função mortificante do significante e contribui para assegurar a permanência abusiva do inconsciente regido pelo Nome-do-Pai". Por isso, em torno de 1968, na obra de Lacan, há "uma nova concepção do analista que contradiz essa tendência a interpretar em nome do pai e da castração" (p.19).

Cottet faz lembrar que o psicanalista não deve ser exclusivamente um tradutor ou intérprete, ele deve também advertir o sujeito sobre a inércia de gozo, sobre algo que petrifica o gozo, tornando o sujeito escravo de um objeto, de um fantasma. Ele dá o exemplo freudiano da “bela açougueira”, inclusive propondo um diagnóstico diferencial entre a açougueira de Freud, que se recusa a ter coisas boas (caviar, salmão etc.), e a anoréxica moderna. Ele diz que hoje a açougueira certamente faria ginástica para falicizar ainda mais a imagem corporal, para adequar seu corpo ao significante imaginário, à imagem fálica. E que na atualidade ainda há muitas provas da estratégia da bela açougueira: privar-se daquilo que se demanda...para continuar a desejar. “Como a açougueira, a histérica se esmera mais em encarnar esse falo como significante último do desejo do que em tê-lo ou recebê-lo”. (p.19)

Cottet diz também que Lacan vai falar de anorexia mental quando constata que algumas jovens não comem frango, nem peixe, nem carne. Elas comem nada. Lacan vai tomar aí o nada como um objeto fundamental da clínica psicanalítica, isso porque, na lida com as anoréxicas, os praticantes têm dificuldade em interpretar o sintoma apenas a partir da demanda e do desejo e mais dificuldade em articular com a castração e do Édipo freudiano. (p.19) Segundo Cottet, "Aqui aparece não um desejo sob a demanda de amor, mas uma demanda de amor por trás de uma greve de fome". Há casos em que "os sujeitos obtêm uma satisfação mortífera no fato de terem fome, mas isso não quer dizer de uma satisfação histérica, e sim de um gozo, de uma perda que interessa a um novo estado do corpo”. (p.20)

Cottet segue com mais comentários do texto de Lacan que se referem ao sentido do sintoma. Há que acrescentar um elemento de não-sentido em benefício de um fator que concerne às modalidades de gozo irredutíveis a toda psicogênese ou à interpretação edipiana clássica.

O primado do simbólico não dá todas as chaves, e pode haver impasses do próprio simbólico. No período que vai até 1975, Lacan dá novos elementos teóricos favoráveis a "uma concepção do inconsciente não orientado unicamente pelo significante saussureano, pelo corte significante/significado, e faz valer propriedades da linguagem ou do discurso inconsciente que não se baseiam na significação fálica." Cottet se refere aqui ao “O Seminário, livro 23: Joyce, o sinthoma” ( 1975-76) considerado ponto de partida para uma nova clínica lacaniana (p.20).

Com isso, Cottet indica, como ele diz, "as premissas que dizem respeito ao nosso tema." Segundo ele, "trata-se de enfatizar a inclusão do significante no gozo e de fazer valer as modalidades do gozo do inconsciente, chegando à justificativa da prática das sessões curtas." Ele diz que “essa prática se opõe à decifração, uma vez que insere o corte no próprio momento de elaboração do inconsciente, visando não fazer prosperar ao infinito a questão: ‘o que isso quer dizer?', bem como realçando um 'isso quer gozar', tal como desenvolvido por J.A.Miller em “Os paradigmas do gozo" (Opção lacaniana 26-27, p.87).

Assim, a direção do tratamento no último Lacan se articula com as manifestações do mais-de-gozar, próprio da sintomatologia moderna (p.21).

Com isso, se explica o sucesso das psicoterapias que acolhem sintomas indecifráveis para o sujeito, como nas perversões, um excesso de gozo indecifrável para ele, o sujeito. Há também sujeitos psicóticos que, invadidos pela pulsão de morte, buscam construir uma nova personalidade. Na França, alguns se consultam com o analista para se construírem, apresentando uma angústia maior ligada ao não-sentido de seu empuxo-a-gozar. Formas de gozo aberrantes ou excessivas desencadeiam uma reivindicação significante, diz Cottet. Essas pessoas querem que se lhes dê sentido onde há cada vez menos sentido.

Por isso, há muitos psicoterapeutas que se oferecem para dar sentido, explicar e compreender o sofrimento, sem ver que por trás, há uma escolha subjetiva, “uma escolha que pode revestir uma forma masoquista, mascarada por uma ideologia vitimária” (p.21) A afirmação de Cottet é de que tudo o que se especula sobre o stress pós-traumático e as depressões consideradas como sintoma deficitário ou como perda de energia, ignoram que há uma satisfação incluída inicialmente no sintoma, depois na própria fala, na queixa. (p.22)

Cottet diz que as sessões curtas de Lacan não são motivadas pela palavra vazia, como em 1958. Ele conta como Lacan interrompeu o relato erudito de uma dissertação sobre a arte de Dostoiévski, e o paciente deixou escapar um pequeno pedaço de seu fantasma de gravidez anal. Faz parte da ética analítica, do desejo do psicanalista não ser neutro em relação ao blábláblá do sujeito. Então, a partir dessa dimensão de gozo da fala, Lacan formula uma nova doutrina da língua destacada do conceito de cadeia significante. De acordo com a nova doutrina, segundo Cottet, "há uma intrusão do objeto a na própria fala que lhe dá esse valor de gozo". Também de acordo com Cottet, "se somos sensíveis a essa dimensão de gozo da língua, podemos dar conta das sessões curtas de outra maneira: quanto tempo é preciso deixar o sujeito gozar da fala (ou 'apalavra')?” (p.22).

Não é suficiente interromper a fala vazia para fazer o sujeito compreender que ele dissimula a questão. Uma clínica do real deve tocar o sujeito no ponto em que sua fala toca em uma pulsão. Cottet exemplifica: a moça que foi abandonada pelo noivo, aniquilada, apresentava o que (em termos freudianos) ele chama uma “hemorragia narcísica”, já que ela atribuía ao noivo qualidades superlativas que eram as que lhe faltavam.(p.23) "Por isso, não é mais nada. Está vazia". O homem escolhido é como um enxerto e quando lhe falta, ela se vê aos pedaços. Na própria maneira como expressa sua queixa, faz aparecer outro sintoma, a relação com a língua. Nela se percebe que a preocupação com o bem-dizer tem virtudes de um alívio sui generis, chegando a sugerir uma questão diagnóstica. Cottet diz que em certo momento, não estava muito convencido de tratar-se de um luto, pois sua queixa tinha entonações de melancolia, considerando-se a desvalorização de que é objeto toda vez que se compara com o objeto perdido. (p.23)

Inútil interpretar em termos de ideal perdido. Os amigos já tinham interpretado sua dor como algo masoquista. Também fizeram interpretações edipianas, interpretações selvagens sobre suas relações primitivas com sua mãe, “ao passo que a verdadeira questão é a da inclusão”, como analisa Cottet. De fato, um gozo em sua queixa e no relato de seu próprio caso justifica não escutá-la por muito tempo, de modo a não acrescentar à sua tristeza muitos significantes alimentando seu sintoma e satisfazendo seu gozo obscuro.

No caso da paciente, segundo Cottet, "os clichês sobre a frustração e a castração ratificariam o 'menos que nada' com que ela se identifica. Trata-se de orientar-se mais pelo excesso, pelo mais-de-gozar", como se lê em “O Seminário, livro 20: mais ainda” (1972-73), de Lacan, sobre o gozo obscuro. (p.24) A paciente apresenta o sintoma na dimensão do déficit, do 'perdi alguma coisa'. Mas, na opinião de Cottet, é sobretudo um “gozo suplementar” que não foi subjetivado pela paciente, mesmo com as interpretações dos amigos. 

Casos como esse devem fazer oscilar os diagnósticos convencionais. Resta encontrar os significantes adequados para separar a paciente de um tal fantasma, em vez de exaltar o Outro gozo.

II
Esta segunda parte aborda um problema na França que tem a ver com a regulamentação da prática dos psicoterapeutas e dos psicanalistas, pressionada por uma parte do corpo médico.
 Artigo do Miller, "Da utilidade social da escuta" (Ornicar, p.119, out/2003), fala que a escuta alcançou na França uma escala de massa, tornando-se um fator da política. Há pretensão de normalizar e avaliar o ato analítico, usando os métodos estatísticos de avaliação de condutas, principalmente aqueles que tiveram sucesso na cancerologia ou na epidemiologia. Os comportamentalistas e os cognitivistas são os mais interessados nesse ajustamento, enquanto os psicoterapeutas temem a submissão à ordem médica. E a psicanálise, aí inserida nessa avaliação, recusando, é evidente.

A psicanálise recusa, até porque ela, com base em seus princípios, não dá garantias à duração ou à cura do sofrimento.  Para os psicanalistas, não se pode legislar sobre o inconsciente, só as escolas de psicanálise podem dizer quem é ou não analista, "à luz da prática do divã."(p.26)

Cottet lembra aqui que já mencionou na primeira parte a importância de “fazer os responsáveis pela regulamentação e os psicoterapeutas partidários da medicalização compreendam que o sentido do sintoma não é objetivável, que há um hiato entre a causa do distúrbio e a estrutura do sintoma”. (p.27)
A prática psicoterápica não pode ser avaliada em termos de benefícios imediatos. Há um benefício do sintoma que não pode ser considerado como puro déficit quantitativo. Cottet seguindo o que afirma Freud em “Além do princípio do prazer”, diz que “há uma reação terapêutica negativa, a qual traduzimos como gozo do sintoma como núcleo de real do sintoma que o torna não-todo passível de ser desenlaçado pela fala e tampouco pela interpretação” (p.27).

Além disso, há uma clínica contemporânea - uma espécie de clínica do consumo, que considera tipos de comportamentos definidos sociologicamente por identificações, por práticas sexuais, como o modo de gozo dos gays, dos 'sado', das lésbicas, dos transexuais, - em que há a oferta de escuta para adormecer a dor de vítimas de acordo com a ideologia contemporânea da vítima (p.27).

Cottet diz que na França, Boris Cyrulnik (neurologista e psiquiatra francês), com seu conceito de resiliência, acha que uma boa escuta (que dê sentido) consola todas as vítimas do mundo. Para a psicanálise, no entanto, "há o irreparável, por exemplo, o traumatismo impossível de simbolizar ou de ser significado pelas palavras". (p.28) A psicanálise não se confunde com essa prática de boa escuta. “Ela é uma prática que divide o sujeito quanto ao sentido do seu sintoma, em uma certa satisfação que dele retira. Em outros termos, a complexa relação entre inconsciente e real do trauma impede a definição da psicanálise como uma prática exclusivamente de escuta."

De acordo com Cottet, escutar o sofrimento humano é algo sádico, pois é complacência com ele. Ou tratamos o sujeito ou escutamos o discurso que resulta de seu sofrimento. Não se pode deixar o sujeito gozar ambiguamente do sofrimento de que ele fala. O que se deve fazer é “tentar elucidar alguma coisa nesse espaço esburacado (...) entre a busca de uma causa que é sempre imputada ao outro, e o próprio sintoma" (p.28).

Cottet retoma aqui os princípios fundamentais da psicanálise. Mantida a ética analítica, pergunta-se sobre uma prática psicanalítica em um dispositivo não inteiramente em conformidade ao discurso da psicanálise. Ele pergunta se é possível um ato analítico fora do discurso psicanalítico em instituições, como os hospitais, dispensários, prisões. Não se pode mais pensar que a psicanálise aplicada a esses campos é, em relação a psicanálise pura, um empirismo cru e sem princípios (p.29). Cottet, fazendo comparações entre a psicanálise pura e a aplicada, diz que, a psicanálise pura também pode fracassar se o sujeito (mesmo em casos clássicos, como o sintoma histérico) se opõe a ela. Quanto à aplicada, há efeitos muito rápidos do trabalho analítico realizado em dispensários. Há casos de enurese infantil que dizem respeito ao fantasma da criança estar referido à sexualidade de seus pais. E que essa pode ser uma interpretação efetiva, proferida tanto numa instituição quanto no consultório.

Cottet lembra aqui o que chama "uma pequena lição de epistemologia: uma prática esclarecida não se degrada, nem abandona em nada seus princípios, ao deformar seus conceitos para ampliar o campo de experiência", referindo-se ao epistemólogo Gaston Bachelard que diz que 'a riqueza de um campo científico se mede por sua potência de deformação'.(p.29)

Cottet sugere aplicar essa definição, mudando a relação entre o puro e sua aplicação. Ele diz que quando se vai numa extensão, isto é, da variação entre as práticas, a aplicação não corresponde a uma degradação. Lacan adverte que a psicanálise se degrada em uma imensa desordem psicológica se for sem princípios e sem ética. E Cottet diz a esse respeito: “Mas essa ideia extrema não é uma fatalidade”, acrescentando que quando não há as condições ideais para o exercício da psicanálise, é possível considerar outras modalidades de prática que não as do divã (p.30).

 Em seu texto de 1946, “Psicoterapia de inspiração psicanalítica”, Alexander defende a tese da reeducação emocional do ego e do controle da transferência. A cura deveria acontecer antes da transferência, o que ilustra, bem a resistência do psicanalista ao ato que ele reivindica, e em seu próprio consultório.  

Portanto, os princípios gerais não são forçosamente enfraquecidos (termo usado como ‘deformação’ e que Cottet opõe a ‘degradado’) pelas necessidades sociais das práticas psicoterápicas. O desvio se produz quando o que se visa é uma cura acelerada. (p.30) Ele cita Arend Heyting quando diz pensar na lógica moderna. A lógica enfraquecida não quer dizer falta de axiomas ou de princípios, pois se trata de uma lógica que suspende a bivalência do verdadeiro e do falso e multiplica as modalidades intermediárias entre eles, sobretudo pela supressão do terceiro excluído (p.31).

 Com a supressão de alguns axiomas surgem novos teoremas. "Por analogia, diz Cottet, reencontramos a intuição primeira do método analítico, que opera, segundo Freud, 'per via de levare', ou seja, retirando, extirpando sempre alguma coisa. Com Lacan, podemos dizer por extração, especialmente extração do objeto a”(p.31).

Cottet fala do o campo das psicoses em que, diz ele, "o gozo pulsional deve ser inteiramente reconstruído tendo por base um parâmetro faltante, a saber, a exclusão pelo sujeito do -phi do gozo fálico.

Outro exemplo de enfraquecimento tomado da estrutura da língua: quando se enfraquece a resistência da barra saussureana, o uso corriqueiro do significante é eliminado. É aqui o neologismo ou transparência entre significante e significado característicos do dizer psicótico.

Cottet ainda acrescenta "diferentes torções, deformações dos conceitos, enfraquecimento do sentido lógico e o forçamento do próprio Freud, coagido a recorrer ao Édipo invertido". Segundo Cottet, "Essa monstruosidade teórica vira a doutrina de cabeça para baixo ao se chocar com o real do caso. O caso particular do 'Homem dos lobos' não pode ser interpretado pelo Édipo clássico” (p.31).

"A psicanálise aplicada, tanto o tratamento quanto os próprios efeitos terapêuticos, inscreve-se nessa epistemologia da deformação, da topologia, da anamorfose dos conceitos. Ela não se confunde com a degradação dos princípios, a saber, a definição do inconsciente estruturado como uma linguagem e a complexa relação entre o inconsciente e a pulsão"(p. 32). Assim, segundo Cottet, a questão não é saber se a psicanálise se aplica à psicose, até porque psicóticos já frequentam um psi.

Então, interessa saber “qual remanejamento da técnica é necessário, em qual disciplina da escuta se formar para se adequar ao laço social resultante da rejeição do inconsciente em algumas formas de demanda específicas da estrutura psicótica"
Os lacanianos veem-se confrontados com o que diz Lacan (“De uma questão preliminar...”, p.590): “pois usar a técnica que ele (Freud) instituiu fora da experiência a que ela se aplica é tão estúpido quanto esfalfar-se nos remos quando o barco está encalhado na areia”.

Cottet diz para não interpretar esse alerta de Lacan contra os desvios como uma afirmação de uma ortopraxia ...como a versão prática da ortodoxia (p.32). "Se alguns parâmetros da prática standard foram excluídos, é também ocasião de uma prática inédita, mesmo se, por exemplo, a estratégia ortodoxa visando ao fim do tratamento, isto é, à travessia do fantasma, esteja excluída. Em algumas instituições, a duração das sessões ou do tratamento não depende da decisão do analista, mas nem assim o ato analítico se torna menos valorizado, incluindo-se aí a interpretação, como assinalado no exemplo sobre a enurese em crianças”. (p.32/33).

Há psicanalistas trabalhando em prisões. Uma jovem psicóloga aceitou escutar criminosos na penitenciária. Cottet diz que enquanto ortodoxos, a máxima de Lacan em “Televisão”, p.74, não nos encoraja: “a análise deve ser recusada aos canalhas [...] porque os canalhas se tornam burros”. Muitos pacientes, no entanto, foram se consultar com ela. "Em muitos casos podemos nos perguntar se o sujeito é verdadeiramente sujeito do inconsciente e se a passagem ao ato criminoso foi motivada por um complexo neurótico", pois é possível que “a vontade de gozo se mostre irredutível a todo determinismo familiar (p.33/34).

 Se a psicanálise selvagem resulta apenas de sua insuficiência conceitual (Lacan, “A direção do tratamento...”, p.609), a extensão dos limites de sua aplicação não se confunde com as variantes de um 'tratamento-padrão', ´título que, segundo Cottet, mostra o ato analítico sendo definido pela pureza dos meios e não do enquadre.

Concluindo esta segunda parte, diz Cottet, "a clínica psicanalítica não se confunde com o uso de receitas terapêuticas aplicadas a uma zoologia humana. Permanentemente aplicada ao particular, ela lida apenas com exceções. É dessa forma que o terapeuta implicado em seu ato se aplica em fazer existir o inconsciente" (p.35). 


III

Cottet retoma assunto da regulamentação da prática analítica e fala também de uma reflexão dos psicanalistas sobre o tratamento das "novas formas dos sintomas clínicos". A Escola da Causa Freudiana (escola lacaniana de psicanálise que se propõe a formar psicanalistas na escuta do mal-estar contemporâneo) considerou o momento de fazer uma oferta ao público, a oferta de seu savoir-faire sob os termos Centro Psicanalítico de Consultas e Tratamentos (CPCT). Ali os psicanalistas transmitem os resultados de uma prática que não está reservada à elite. O CPCT, que é em Paris, é gratuito e está dirigido a qualquer pessoa, que pode telefonar para um encontro quase imediato com um analista.

Cottet formula questões sobre essa instituição:

- Em que ela prolonga uma escola de psicanálise? 
- O que a diferencia de outras práticas institucionais comparáveis? 
- Quais são seus primeiros resultados?
- Quem são os pacientes que vêm se consultar?
- Quem dá consultas?

Antes de considerar essas questões, ele aborda o que se refere à psicanálise aplicada fora de seu enquadre standard, reivindicando a possibilidade de um ato analítico fora do que se considera o enquadre clássico.
E assim, há um esforço para não rebaixar esse ato institucional  reduzindo-o a uma mera psicoterapia de inspiração psicanalítica (que visaria ao rendimento terapêutico), de que Lacan dizia que levava ao pior.
Não há, portanto, a obsessão pelo rendimento terapêutico.
A psicanálise não é substituída por conselhos nem tem a finalidade de suprimir o sintoma. Tudo isso são preocupações da terapêutica comum que desconhecem a estrutura subjetiva determinada pelo inconsciente (p.37).

Cottet já falou da oferta institucional direcionada ao público e lembra que, em ”A direção do tratamento...”(p.623), Lacan sempre faz a oferta preceder à demanda. Cottet refere-se aí ao que diz ser o famoso chiste: “com a oferta, criei a demanda”.

O dispositivo analítico é feito de modo que essa oferta cria a demanda sem responder a ela. Em nosso caso, ela se manifesta de modo espontâneo por intermédio dessa oferta pública (como no CLAC). É uma demanda de tratamento, digamos, uma demanda de escuta imediata, espontânea.

Tomando outro ponto de vista, ele pergunta se a transferência se endereça mais a um determinado analista ou à instituição? Isso é uma segunda variante.
Mas no primeiro caso, com relação à demanda, há um ponto comum entre a psicanálise pura e a instituição, que é algo a ser recusado. Cottet lembra a esse respeito que há um enunciado de Lacan sobre a dialética da demanda e da oferta em psicanálise, tal como no “Seminário livro 20: mais ainda”, p. 170: “Eu te peço para recusar o que te ofereço porque não é isso”. 
Na instituição, também existe situação de acordo com essa máxima: “Não acredite que essa oferta de escuta vai dispensá-lo de uma enunciação, à qual você não se liga, ou que ela lhe trará o que você acredita que lhe falta. Você de fato acredita que você quer o seu bem?”

A psicanálise questiona se o sujeito humano quer fundamentalmente seu próprio bem. Isso porque o sintoma testumunha o fato de que o ser falante nem sempre trabalha em defesa de seus próprios interesses. A psicoterapia, ao contrário, pressupõe que o sujeito quer o seu bem e que o outro tem condições de lhe dar. (p.38)
Cottet diz: "enfatizamos um conflito, ... uma tensão entre a demanda e o desejo, entre o desejo e o gozo, entre a pulsão do sujeito e seus ideais. Sempre há um mal-entendido quanto à suposta proporcionalidade entre oferta e demanda no tratamento standard". No CPCT isso se dá, embora de modo mais velado. E segundo Cottet, o sujeito pode acreditar que encontrará o seu bem e que este lhe será dado por aquele que o trata por razões humanitárias.

No CPCT, o tratamento é limitado no tempo, uma vez por semana, mais ou menos, quatro meses destinados a “ver se o sujeito de fato quer realizar um certo trabalho de elucidação da estrutura de seu desejo. Em contato com o analista, ele experimentará uma divisão subjetiva que talvez o leve a uma análise”.

Cottet enfatiza um papel de passador que tem o CPCT, uma mediação transitória entre a demanda terapêutica imediata e uma autêntica demanda de análise (p.38), com esses 4 meses desempenhando o papel de entrevistas preliminares. Estas aconteceriam ali e não no consultório, a fim de precisar o público com que o CPCT lida e quem são os novos demandantes: pessoas que por várias razões, não podem pagar, são estudantes ou jovens, ou não, para os quais com frequência é a primeira demanda de análise. Em geral, um médico, um psicólogo, um amigo aconselham a buscar orientação no CPCT.]
De acordo com o caso, alguns podem ser diretamente encaminhados para um analista fora do Centro, pagando alguma coisa. Cottet lembra que “nem a psicoterapia nem a psicanálise são aconselhadas para todo mundo, mas o encontro com um analista é a melhor situação possível para vislumbrar as estratégias mais bem adaptada a seus casos” (p.39).
Ainda sobre as entrevistas preliminares, Cottet diz: "formulamos todas as questões habituais concernentes ao sofrimento, ao sintoma e, o mais precisamente possível, ao embaraço do sujeito. Somos muito vigilantes quanto à questão da psicose". E isso porque as pessoas que procuram o CPCT estão normalmente numa situação precária. São geralmente pessoas que deixaram suas famílias, estão desempregadas e quase sempre desconectadas do laço social. Então, estão normalmente numa situação de precariedade. E nessa situação, acabam sendo os casos mais difíceis, principalmente quando a precariedade mascara um sintoma de psicose.

Há também casos mais simples de sujeitos socialmente conectados, como psicólogos. Uma jovem sofrendo de inibição não consegue terminar seus estudos de psicologia. Para terminar com inibição, fazer análise, diz Cottet. "Ela veio justamente formular para ela própria as boas questões e elucidar as razões de sua escolha profissional. Não imagina que, ao vir ao CPCT, está justamente terminando alguma coisa: a greve do inconsciente que, até então, mantinha, sendo esta um significante intermediário entre a demanda de ser ouvida e o sujeito suposto saber, entre sua demanda e o amadurecimento de sua decisão de dar mais um passo e entrar em análise.

De todo modo, a analogia das consultas no CPCT com as entrevistas preliminares não esgota a questão do tratamento” (p. 40). Há que ver também quais efeitos terapêuticos podem ser obtidos em quatro meses.




*Cottet, S. Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contemporânea. In: Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Contra Capa, pp. 11- 51.