O processo psicanalítico da “talking cure” e do “gozo do Um” por Regina Osório

"Mulher planta" da artista Alejandra Popa
Regina Weinschenck de Faria Osório
Psicanalista.  
E-mail: reginaosorio@gmail.com
...il n'y a du discours sur l'origine à traiter 
de l'origine d'un discours. 
Où Suis-je dans le dire?
Jacques Lacan - Sem.XIX: ...ou pire. 
Introdução
Lacan assina sua contribuição à teoria do Inconsciente ao que nomeia “campo do gozo” e nos oferece valioso instrumento para o entendimento da subjetivação d’ Isto que Fala, que em suas possíveis formas de enlaces, não cessa de se inscrever como questão para os que conquistaram a herança freudiana e que levam sua prática.
No estudo de um caso clínico valoriza-se o caráter ético da clínica do Real no entendimento de nosso título - de uma exceção (gozo do Um), o discurso do analista ((a) no lugar de agente) na radicalidade da função desejante, faz trabalhar a articulação da linguagem na livre associação e promover o sujeito de/com efeito de sentido. A teorização do ponto de retorno, reverberação do gozo do Um, ilumina nossa perspectiva, onde reconhecemos da parte de Lacan, um retorno à Freud. 
Talking Cure
Uma vez, pretendendo uma cientificidade para o que é da ordem do psicológico, Freud em 1895 em seu inaugural escrito projeta um Aparelho Psíquico(1). Estuda seu funcionamento e formula uma novidade que escapa à lógica da época o que nomeia, Desejo Inconsciente.
A este complexo, Freud atribui o Mal Estar da CivilizaçãoSeu entendimento quanto à subjetivação deste desejo inconsciente caminha, ao longo de seu produtivo trabalho da noção inicial de que o paciente numa correspondência linear restitui seu bem estar recordando e elaborando suas lacunas de memória no relato ao médico, para num segundo tempo, reconhecer que esta narrativa não é linear. Os conflitos gerados inicialmente na contrapartida entre pulsões sexuais e de auto-conservação seriam de fato, num segundo tempo, conflitos entre uma pulsão de vida e uma pulsão de morte. Onde pulsão de vida, Eros, pulsiona na intenção da agregação, do Um, enquanto a pulsão de morte, Thânatus, no modo de uma inércia, pulsiona na intenção de uma desagregação, uma resistência ao vital. Temos então o aparelho psíquico com um conflito pulsional além de um princípio de funcionamento, o princípio de prazer.
A importância deste princípio não é abolida pela reformulação da teoria pulsional. À propósito, esta reformulação nos traz uma nova categoria do embate pulsional. Ou seja, com a reformulação temos o reconhecimento de dois campos energéticos ou duas dimensões divergentes em um aparelho, na feitura do Desejo, operando de forma cativa; uma economia nirvânica (gozo), onde o que importa deste embate é o emergir de uma presença no campo da ausência, campo mortificado do simbólico, a realização do sujeito do desejo inconsciente – na palavra, no dito, subjetivação do dizer.
Com o passar do tempo, novas modas, novas palavras, mas ainda, o sintoma. Novos? Não sei se podemos dizer novos, diria apenas, sintomas freudianos. Uma solução de compromisso do que? Do parlêtre - do falasser - simplifica Lacan, pois isto é o que realmente constitui objeto para a Psicanálise, este é o objeto da talking cure.
Lacan segue o princípio Freudiano que, ao subverter a lógica científica, inaugura o que nomeia-se, “campo freudiano”, campo de pensamento que se caracteriza por pesquisar exatamente o equívoco da palavra e do sentido a partir do Saber que se revela no ‘Isto que fala.  Da pretensão de um Saber científico a teoria do Inconsciente segue pela porta do Real, do que resta da experiência reconhecendo-se um Saber para a Ética(2).
Do gozo do UM
Nos anos 70 Lacan nos diz, a condição do inconsciente é a linguagem enquanto a língua é condição de sentido. Mas, verifica que a bateria significante d’alíngua só fornece a cifra do sentido. Cada palavra dependendo de seu contexto tem uma enorme e disparatada gama de sentido. Desta forma, afirma que é pelo fato de todo significante, do fonema à frase, poder servir de mensagem cifrada, que ele (significante) se destaca como objeto e que se descobre ser ele que faz com que no mundo do ser falante, exista o Um(3).
Ao enfatizar o Um, que quando isolado subjuga o sujeito e quando ligado a outro significante revela um sujeito de/com sentido, nos mostra claramente que na teoria freudiana não se trata de dar um sentido sexual a tudo, mas que, muito pelo contrário, trata-se desta matéria significante fazer um nó que cifre um corpo que fala e busca seu sentido. Uma vez que as cadeias que se enodam não são de sens, de sentido, mas sim de jouis-sens, de sem sentido, de Gozo, trata-se aqui de atar e desatar cadeias significantes e não metáfora, trata-se aqui de entender como o Aparelho da Linguagem, da homeostase do processo primário, do princípio do prazer, vai além do Isch Lust. Trata-se de identificar como, da inércia da linguagem, Um toma o lugar de sujeito da fala - parlêtre!
O circuito pulsional banha as bordas do real no gozo - do Um quando este, com o Outro, é uma totalidade. Um furo neste plano faz do Um Dois porque há um furo, um intervalo, um gozo a mais (a) que leva o pequeno além do campo do gozo, ao campo do discurso, desestabilizando a homeostase tautológica. 
Podemos reconhecer aí a ação do conflito pulsional, o embate entre:
1- Gozo da linguagem, em seu carácter inerte onde o Um permanece fora dos efeitos de sentido.
2- Gozo do (a) – um a mais, a repetir numa insistência vivificadora para o Um como exceção venha a enodar imaginário, simbólico e real, no Desejo e seu objeto (a)
Em seu artigo S’truc dure, Jacques-Alain Miller nos diz que “o objeto é um elemento que está fora da estrutura da linguagem, mas faz parte da estrutura do discurso” (4). Desta forma, o objeto é o que recupera para o sujeito exatamente o que está fora da estrutura da linguagem, gozo do Um, a exceção, sendo o objeto no discurso, exatamente, o rastro da pulsão que se articula na lógica do inconsciente, na lógica do fantasma primordial, e na lógica do significante a constituir o Desejo Inconsciente.
Do Gozo do Um, da unidade isolada, uma gramática pulsional anuncia um Gozo a mais fadado a repetir-se infinitamente por ser da ordem do impossível o encontro do sujeito com o objeto causa de desejo. Quebrando a inércia inaugural, este “a mais” é então causa de uma história que se dá em função de “um a menos” no Outro.
O Processo psicanalítico
No estudo de um caso clínico, organizamos o relato deste em tempos, onde verificamos em cada etapa a posição do sujeito diante da fala. Trabalhamos exatamente um momento inaugural onde verificou-se a posteriori o valor operativo do conceito “Gozo do Um”. Conceito que empresta sua lógica ao que o casal R. e R. Lefort nomeia de “uma forma autista de gozo” (5). Que por realçar o caráter Real do significante, o de “nada querer dizer” ao mesmo tempo em que é suporte da ex-sixtência para Um sujeito, constitui sempre uma hipótese inicial de trabalho clínico.
Trabalho onde o Desejo de analista deve reconhecer e discriminar o momento em que, do falatório da queixa constitui-se uma Demanda!
O que queremos enfatizar aqui, é a condição fundamental para que haja um trabalho analítico do campo freudiano. A Demanda uma vez que tem um endereçamento, veste o real do objeto causa(a) num dito, um apelo, uma crença, e constitui assim uma transferência. O analista abre o campo do possível, um possível saber o que fazer com sua questão. Pois, só sob a transferência, pode-se levar um “parlêtre” ao processo de análise freudiana.
Como diz o casal Lefort, têm-se o grito da demanda, mas temos também o balbuciar que está fora de toda demanda. O balbuciar aparece mesmo quando toda demanda está satisfeita. Este balbucio não é comunicação. Ele é satisfação em si mesmo.  Perguntamos: este balbucio é um significante? Lacan nos diz que sim. É um significante que não faz comunicação. Que não faz discurso. Por quê? É um significante que não faz apelo à nada! Antes de ser comunicação com o outro, ele é a manifestação do pequeno homem, do pequeno sujeito vivo ele é – gozo de uma forma autista. O balbucio é um S1 sem S2, é um S1 solitário, fora dos efeitos do sentido, solitário no campo do gozo, marcando a radicalidade do caráter do significante, o de “nada querer dizer”. Temos aí um tempo inicial. Neste só podemos afirmar, “há o um”, mas este Um está fora dos efeitos de sentido. Há uma identificação primária, um ser marcado como um, mas isto nada significa por estar este fora da estrutura relacional da linguagem, fora do campo do discurso. Fora do discurso, em várias modalidades de discurso, encontramos as novas modalidades de sintomas, a reverberar o Gozo que escapa da significação fálica. Este gozo que reverbera o Um em seu carácter de exceção, insiste, repete, o resta a dizer!
De Desejo à Desejo, opera-se o processo da clínica psicanalítica. 

Referências:

1- Freud. S., Projeto para uma psicologia científica, in Obras Completas I vol. Rio de Janeiro: Imago Ed.,1960.
2-Lacan, J., Nota Italiana in Uno por Uno, março de 1991
“se não se seduz ao Amo, velando-lhe que esta é sua ruína, o saber (do real) ficará enterrado como estevedurante vinte séculos, nos quais o científico se acreditava sujeito”.
3- Lacan. J, Televisão, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993.
4- Miller, J.A, Matemas II, Manantial Ed. B. A. 1991
5- Lefort, Bobert e Rosine, L’Infantil et le Féminin, in Archives de Psychanalyse, Ed. Éolia, Paris
6- Lacan, O Seminário XVII, L’envers da la psycanalyse, Ed. Seuil, Paris, 1991
7- Lacan, J. O Seminário XX, Encore, Ed.Du Seuil, Paris, 1975
8- Lacan, J., O Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Rio de janeiro: Zahar Ed., 1979.
9-  Lacan, J., Seminário inédito, ...Ou Pire. 1971-72.



Rio de Janeiro, julho 1999.