Sobre “Transformações do Bate-se numa criança” por Eliana Bentes



 Um estudo sobre o texto de Freud de 1919, Bate-se numa criança, e sobre “Transformações do Bate-se numa criança”, texto de Miller em “Do sintoma ao fantasma, um retorno” - Cap. VII.


                                                                                      Eliana Bentes Castro

Paisagem Agreste (1959) por Antônio Bandeira.
Não sei muito mais - assim era o verdadeiro título de Bate-se numa criança. O que está em jogo aí é a função do A barrado, isto é, o desejo do Outro. Esta falsidade do Outro do saber é correlativo ao fantasma.
” No sé mucho más – pegaban a un niño”. (Del síntoma al fantasma. Y retorno – Miller, J.A., pg. 123)   ----- $^a/A barrado        
Freud escreve este texto, quando está trabalhando um tipo particular de perversão e a questão do masoquismo. Trata-se de uma contribuição a origem das perversões sexuais. Nesse artigo será discutido o mecanismo do recalque e os motivos que põe em ação o recalque.
É freqüente nas histerias e obsessões o relato de fantasias prazerosas onde o fundo é uma criança apanha, ou é espancada. Essa fantasia vem associada a masturbação. O fantasma aqui, segundo Miller, se apresenta como transclínico (errância além de um sintoma patológico, além da estrutura), pois aborda as neuroses e também as perversões sexuais.
Essa fantasia é confessada com hesitação, com vergonha e culpa. Diferente de quando se relata as lembranças de experiências do início da vida sexual. Eram relatadas aos seis anos de idade ao verem professores punirem colegas da mesma idade. “Sou espancado” é enunciado numa construção em analise, já que não foi recordado.
Lacan, ao tentar formular o final de análise, diz que este objeto singular que é o fantasma também está submetido ao tratamento analítico. Ele está tentando cernir os contornos da abordagem freudiana do fantasma. Lacan concentrou-se no atravessamento da fantasia a problemática de tudo que se passa na experiência analítica.
Definimos o fantasma como um modo de refúgio em relação ao desejo do Outro. (Miller) A fantasia responde a falta no Outro.
Essas fantasias eram ligadas a um alto grau de prazer e satisfação auto erótica. Olhar o colega apanhar também trazia satisfação. Elas não esclareciam, quem batia, se a criança que apanhava era conhecida, se era a mesma criança que apanhava sempre, que sexo, etc. No geral a fantasia era: “bate-se numa criança” (de traseiro nu). Temos aí um traço primário de perversão sendo que uma perversão infantil não persiste por toda a vida, pode ser submetida a um recalque ou pode ser substituído por uma sublimação.
Se o componente sexual que se soltou prematuramente é o sádico, podemos esperar que a seu subseqüente recalque resultará numa neurose obsessiva. Numa neurose histérica, com dores e inibições, tem um componente masoquista. É entre os dois e cinco anos de idade que são marcadas essas experiências infantis, que ficam recalcadas e esquecidas pela criança. É sempre um adulto que bate, reconhecido como pai ou um substituto. Freud vai decompor gramaticalmente essa fantasia em três tempos que vão nomear a posição subjetiva:
1-      Meu pai bate numa criança que eu odeio. O que cria a fantasia, é estar olhando.
2-     “O meu pai me bate”. (Aqui, a criança que produz a fantasia é a que apanha). Traço masoquista, certamente.
3-     “Bate-se numa criança”.
Castigos e humilhações podem substituir a fantasia de espancamento.
O sintoma é aquilo do qual o sujeito se queixa enquanto que a fantasia é aquilo cuja confissão causa vergonha, culpa, e gera silêncio.
1-As afeições da menina estão fixadas ao pai. A criança que apanha na fantasia, costuma ser um irmão ou irmã, protegidos pelos pais como caçula. Apanhar, então, vai significar privação de amor e humilhação. O nascimento de um irmão ou irmã, tira o filho do trono, de sua onipotência imaginaria, donde, Meu pai bate numa criança que odeio, vai significar meu pai não ama essa outra criança, ama apenas a mim.
Freud se pergunta se essa fantasia, que acalma o ciúme da criança, seria erótica ou sádica. Nesse estágio de organização genital é claro o desejo da menina de ter um filho com o pai e, no menino, igualmente o desejo de procriar com a mãe, assim vai governando as tendências libidinais da criança. Esse amores incestuosos sofrerão o recalque, a partir da infidelidade como o nascimento de irmãos ou pela não realização da fantasia esperada por tanto tempo. Esses eventos não são causas efetivas, e sim, esses casos de amor destinados a fracassar. O recalque incestuoso serve para a criança efetuar novas escolhas, agora influenciado pelos desejos inconscientes e pelo sentimento de culpa.
A segunda fase da fantasia é expressão dessa culpa: meu pai me bate. Fantasia agora masoquista, especialmente na menina. A culpa converte o sadismo em masoquismo.
Agora apanhar significa “meu pai me bate”, então ele me ama, sentido genital recalcado. Culpa e amor sexual. A fantasia aqui permanece inconsciente e só pode ser reconstruída em analise. A forma da fantasia é sádica, porém a satisfação é masoquista. Todas as crianças que apanham do professor nada mais são que substitutos da própria criança.
Essas observações servem para o esclarecimento da gênese das perversões em geral, do masoquismo em particular e para avaliar o papel desempenhado pela diferença de sexo na dinâmica da neurose. A perversão não é mais um fato isolado da vida sexual da criança, mas encontra seu lugar no desenvolvimento normal, típico. Uma relação com o objeto de amor incestuoso da criança com o seu complexo de Édipo. Inicia-se neste complexo e permanece como herdeiro da carga de libido daquele complexo oprimido pelo sentimento de culpa.
Essas experiências permanecem obscuras na análise na medida em que ficam recalcadas. Freud afirma que o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo das neuroses e a sexualidade infantil que culmina nesse complexo é que determina realmente a neurose. Dessa forma, a fantasia bate-se e outras fixações análogas também seriam apenas resíduos do complexo, cicatriz narcísica tipo sentimento de inferioridade.
Essa fantasia pouco esclarece a gênese do masoquismo. O masoquismo se origina do sadismo que foi voltado contra o eu, por meio da regressão de um objeto para o ego. Consideramos mais a fantasia do que o ato propriamente dito.
Pessoas que abrigam a segunda fase da fantasia detectamos efeitos sobre o caráter. Desenvolvem uma sensibilidade e uma irritabilidade especial contra quem quer que possam incluir na categoria de pai.
A primeira e terceira são sádicas – nas meninas –, e, a segunda, masoquista. Nos meninos não tem estudo suficiente. Ou são pessoas que obtinham satisfação sexual exclusivamente pela masturbação com fantasias masoquistas ou levavam a cabo uma relação normal paralelamente as experiências masoquistas. A impotência pode ter como causa uma atitude masoquista, arraigada desde a infância.
Leitura com Miller:
Trata-se de uma perversão primária monomorfa, trata-se de um traço. O que origina o objeto parcial e depois objeto a. Freud mostra a diferença do traço de perversão no neurótico e a perversão no perverso. O complexo de Édipo é estruturante nos dois.  A leitura edípica do Bate-se tem como objetivo reencontrar nesse fantasma o pai. Por que situar o fantasma como herdeiro do complexo de Édipo? O herdeiro fundamental para Freud do Complexo de Édipo é o Superego. É demasiado supor que o pai em questão nesse fantasma é o Nome do Pai. Outro aspecto é saber se o pai em questão é um pai super egoico.
Onde começa a entrada do pai neste texto? É a menina que abre a porta ao pai. Fase 1 do fantasma feminino – fase que vai indicar a função do pai. 2- o tempo que permanece inconsciente, enquanto que no homem aparece consciente o personagem da mãe.  Sou espancado pela minha mãe (pg. 129).
Meu pai me bate está presente nos dois sexos. Os dois sexos relacionados ao falo. O que contradiz as teorias feministas. Nunca é recordada e sim uma construção da analise.
Qual a diferença do supereu e do nome do pai?
Bate-se numa criança... não sou eu que apanho... outra criança que tenho ciúme é espancada. Podemos comparar com não é minha mãe - uma denegação. Quem bate? O pai é uma função de estrutura. Esta fantasia não é de caráter masoquista. Também não é sádica, porque não é o sujeito que bate. Sempre um adulto.
Nas três etapas, o verbo bater está presente. Laurent fala de ver, amar e bater. É pulsional, é um significante?  Se é pulsão, implica uma anulação da demanda. Significante bater = amar = odiar, ou seja, significante separado do significado.
Se diz que quem ama bem, castiga bem. Se meu pai bate em outra criança, está me privando de amor. Bater é suscetível de outros significados e de mais amorosos. Freud acrescenta: meu pai bate numa criança que eu odeio e portanto só ama a mim. Necessidade lógica. Para justificar o tempo 2.
Meu pai me odeia à eu me odeio e que Freud diz que também = meu pai me ama. Bater substituto do amar (regressão).
 Freud não está ali em posição de dar significado, pois é o sujeito que introduz algum significado. Temos uma serie que converte o sadismo em masoquismo. A primeira parte formula uma rivalidade imaginaria. Irmãos e irmãs. Quando a fantasia é retirada do sujeito enciumado, recai sobre ele próprio.
O pai em questão
A culpabilidade motiva esse tempo 2 para Freud pelo que implicava meu pai bate na criança que eu odeio e portanto só ama a mim. O sujeito se sente culpado pelo desejo incestuoso e no tempo 2, apanha do pai.
O pai que bate é em Freud uma escolha necessária em sua lógica. Pai que bate, ama e castiga. Fica entre erotismo e culpabilidade.
A maneira em que se situa o pai tem todo seu peso.  Trata-se de um pai que não responde ao que deveria ser a relação edípica. Daí ter que ver um mais além do pai, os seja, o Nome do Pai.
O pai bater não é = a mãe bater. Existe outra fórmula semelhante ao bate-se que é uma mulher cogida (fodida).
Meu pai me bate - O ato de bater, volta no recalque originário. O sujeito barrado ($) é também uma maneira de escrever “meu pai me bate” e escrever o que necessita a inscrição significante da criança. No significante algo barra, bate (bar, bat) o sujeito e produz sua abolição (anulação, supressão). O sujeito é abolido no simbólico.
Os dois tempos da alienação e separação correspondem aos tempos do bate-se.
O sujeito apanha – é uma encenação da castração, pelo NP. Está posta a castração, a inscrição significante do sujeito, concretiza a lei como tal. O significante barra algo e produz sua abolição.
A fantasia implica o nome do pai. O sujeito apanha, como deve ser. Aqui está posta a castração e a inscrição do significante.
1º o sujeito se aliena por estar marcado e identificado pelo significante mestre; e 2º esta marca implica uma queda própria que Lacan formula desse nada por nada. Por um lado concretiza a lei, mas, ao mesmo tempo, esta lei não se situa sem separação e isto é o que implica o fantasma. É uma apresentação da castração.  A inscrição significante é estritamente correlativa a queda do sujeito, que captou Freud dizendo que havia amor e erotismo. Esta queda implica também o gozo correlativo dessa repressão. Bater, apanhar referente a qualquer portador imaginário do falo. Ninguém pode ignorar a lei.
Há uma correlação desta fantasia com o recalque originário. A pré história que Freud nos apresenta é exatamente esta diacronia que articula Lacan com os dois primeiros tempos da fantasia. A alienação e separação ocorrem em termos de tempos, de fases, que não são cronológicos, mas lógicos.
Miller considera Bate-se, o texto que mais se aproxima do que Lacan escreveu em posição do inconsciente. É a mostra de como o sujeito vem ao nascer. Sua inscrição sob o significante mestre é que a se desprende e se vestirá com a fantasia.
Meu pai me bate – fica no inconsciente. O inconsciente procede do lógico puro e é coerente com interseção e união ($^a).
O sujeito da representação está recalcado. Identificação ao S1 que encontramos no grafo de Lacan, I(A).
Identificação primária e recalque originário são também o fantasma fundamental reconstruído por Freud com o masoquismo primordial que implica.
O pai que bate não faz parte da fantasia. Qual é o pai que está em questão?
A identificação se determina pelo desejo de satisfazer a pulsão. Quer dizer que a identificação sempre é uma identificação significante e todo o tocante a esta identificação significante não satura em nada o que concerne a relação do sujeito com o objeto a. Lacan acentua em relação com a divisão do sujeito que o sujeito está dividido em seu desejo. O sujeito, inclusive o sujeito perverso, não sabe o que deseja. O fantasma é uma resposta ao sujeito sobre o que deseja. Desse modo oculta a divisão do sujeito e do desejo. O perverso se imagina que supera esta dificuldade (pg. 139). Ele não sabe o que deseja sob a forma de vontade de gozo. Na histérica aparece a questão de saber o que quer o homem. No obsessivo, de outro modo, com um não desejar nada, quer dizer o que seria a paz do desejo. O perverso não se encontra em analise, pois está concernido em seu fantasma. O perverso se prescinde do atravessamento da fantasia. Teria que inventar outra coisa.
Concluindo, Miller aponta uma conexão entre o recalque primário e a fantasia fundamental. O sujeito barrado no fantasma, figura aí como sujeito recalcado, do recalque primário. Lacan a partir daí diz que o fundamental no inconsciente freudiano é o significante.
Lacan faz equivaler estritamente no fantasma, o sujeito barrado com um significante barrado. A alma do ensino de Lacan não é o acento unilateral do significante e sim a relação do recalque primário e do fantasma fundamental.
O sujeito não quer saber do real que ele recalca. Para evitar esse real que o agita, o neurótico escolhe interrogar o desejo do Outro, o que queres de mim? Desta forma retarda o encontro com seu próprio desejo.