Grande
Ponto de Interrogação: O Analista como S2 realiza milagres?
Prefácio
de Jacques - Alain Miller. (Primeira parte).
Ao
livro “O inconsciente da criança - do
sintoma ao desejo de saber”.
De Hélène Bonnaud
Por Noga Wine
Desde o início deste curto escrito
percebe-se que Miller é entusiasmado com o livro ao qual faz o prefácio.
Expressões como “entrar para história”, e “o analista pode realizar milagres”
testemunham certa euforia e portanto insira cuidados.
Quem deu o título “O analista como S2”
(eu não achei no livro) apontou para a questão crucial deste ensaio. Analista
como S2? Não como objeto a? Não trata-se do discurso do analista, trata-se
do discurso universitário? Que condições específicas na análise de crianças
inspiram esta posição?
1. Veremos primeiro o que fala Miller.
Depois, li mais o livro porque fiquei curiosa para encontrar nele o que inspira
Miller a dizer que “Se o analista consegue se fazer ser esse segundo
significante, ele realiza milagres com a criança”.
As questões que vejo:
a. Será que o analista de criança entra
como S2 porque o recalque, propriamente dito, o recalque secundário, ainda não
está operando? Houve alienação no S1 e o sujeito se afanisou sob o primeiro
significante, mas ainda não renasceu sob S2?
b. Seria esta afânise, o trauma diante
do encontro com o simbólico? É este S1, ou estes significante do enxame (esaim
enxame), que fazem ou constituem o furo que fere?
c. S1 é o Ics real? Enquanto o
sujeito já se afanisou, mas ainda não se separou do objeto a, o analista
entra de forma diferente? É porque o S2 ainda não está recrudescido que o
analista vai ocupar o lugar de certo saber sobre o sentido do S1? Que sorte de
saber seria esta?
d. A fantasia fundamental ainda não se cristalizou
e, portanto, não faz ainda a defesa diante do Real? Em caso de delírio, sabendo
que este é a defesa do sujeito diante do Real, como lidar com ele?
2. O inconsciente Real? Opção Lacaniana
on line (Miller 2006)
3. Em segundo lugar talvez fosse pertinente
examinar outra vez o seminário VI do Sintoma e fantasia, onde Miller
examina o nó de três termos: Recalque primário, masoquismo primário e a
fantasia fundamental.
Jacques-Alain Miller Resumo
Esse
livro vai entrar para a história, nem que seja por causa de seu título.
Ninguém antes da Hélène Bonnaud deu a um livro este título em questão.
É
que os psicanalistas não estão muito seguros de que as crianças tenham um
inconsciente digno deste nome. Não há inconsciente sem recalque. Ora, o
recalque começa com o período dito “de latência”. Depois há inconsciente, isso
é seguro. Antes, duvidamos disso.
Hélène
Bonnaud tem outra noção do inconsciente, que lhe vem de Lacan. Trata-se do inconsciente
real, do inconsciente como o impossível de suportar. Há as formações do
inconsciente, que se decifram, que fazem sentido. Mas há também o que faz
furo (trou), o que faz excesso (trop), o que faz tropmatismo e troumatismo.
A defesa, como dizia Freud, não tem a estrutura
de um recalque. Ela está antes dele. O falasser está aí diretamente,
cruamente, confrontado ao real, sem a interposição do significante –
que é uma sutura, cataplasma. O significante é algo que não fecha a fenda só a
recobre. O delírio, dizia Freud, é uma tentativa de cura. Como perturbar a
defesa? Essa é a pergunta fundamental que a prática coloca para um
analista.
Para
muitos, a defesa está fora de alcance. Eles nem mesmo a percebem, não sabem que
ela existe, não conhecem do inconsciente senão o simbólico, ou ainda, para os
mais tontos, o imaginário. Hélène combate isso incessantemente. Com a
criança, acontece que se intervenha quando a defesa ainda não está cristalizada.
É uma sorte que deve ser segurada pelos cabelos, pois a ocasião é careca. De
seu encontro com a linguagem, o sujeito sai esmagado, enterrado pelo
significante que o assola (alienado). Ele renasce, born again, do
apelo feito a um segundo significante (S2). Ei-lo entre-dois, recalcado,
deslizante, ek-sistente, sujeito barrado e que se barra (já passou pela
separação). Se o analista consegue se fazer ser esse segundo
significante, ele realiza milagres com a criança. (O milagre é
poder operar o recalque?).
....
“O
homem nasceu livre, e por toda a parte vive acorrentado”. Nada é mais falso.
O homem nasce acorrentado. Ele é prisioneiro da linguagem, e
seu estatuto primeiro é o de ser objeto. Causa de desejo de seus pais, se
ele tem sorte. Se ele não tem, é dejeto do gozo deles.
...Saibam dirigir um olhar corajoso
para o real. Só então vocês terão a oportunidade de agir pelas liberdades.
Bangor,
15 de março de 1913
Hélène Bonnaud
O
título do livro já dá uma diretriz em relação ao saber em questão. É fazer
avançando o sintoma em direção ao desejo do saber e não ao saber. (Já dá
indicação que o S2 em questão é o Outro barrado)
Abertura
Na
sua análise, sua própria infância foi convocada para chegar a uma verdade
que pode não ser objetiva, mas que faz um encadeamento lógico dos eventos
da sua vida com aquilo que ela era no desejo do Outro.
Freud,
e mais tarde Lacan, evocaram o desejo de saber sobre o inconsciente. Ela tinha
comprado o livro Silicet e foi fisgada pela promessa: “Você pode
saber”. Depois de muitos anos de prática ela continua curiosa, o desejo de
saber isto vive e ela acolhe o outro com a certeza que a palavra conta. Ela
ouve as crianças e os seus pais.
A
prática analítica não é fundada sobre a escuta do outro, mesmo que parece
sê-la. Ela se apoia sobre o inconsciente e sobre a estrutura que o determina.
Ela concebe o sintoma como a manifestação da existência do Ics.
A
autora abre com a cena da família e o desejo que circula entre mãe, pai e
criança. O Psicanalista interroga sobre a gravidez, a chegada ao mundo, o início
da vida, os elementos importantes que antecederam ou aconteceram em torno do
nascimento da criança.
A
criança, desafio da modernidade.
A
criança, um sonho para todos?
Primeira aquarela abstrata - 1910 - Wassily Kandinsky. |
A
autora faz a hipótese que a família contemporânea é um sintoma. Não é
mais a família freudiana de casal heterogêneo. O declínio do pai é obvio e sua
autoridade esta desaparecendo. Há diversidade de estruturas familiares. Contudo
os efeitos do Édipo ainda prevalecem em muitos casos.
Ela
defende a psicanálise e explica sua ética comparando-a com outros tratamentos
no centro onde trabalha. Para ela a família é um significante importante para
a psicanálise. Este significante encarna a história do sujeito como
efeito do Ics onde a repetição e a identificação são pilares centrais.
A família era e permanece um dos sintomas da psicanálise.
Freud tinha colocado a criança em relevo na
sua teoria do recalque. Mostrou que os sintomas histéricos brotaram das
cenas infantis esquecidas. A sua hipótese era que há um laço causal entre o
sintoma e a lembrança traumática ligada a ele. O fato de falar em si, já
conduz o sujeito falar da sua infância. A criança é investida com muitas esperanças
do desejo dos pais e se ela os decepciona ela torna-se um sintoma da família.
A
autora critica o ideal de transparência e de classificação segundo os sintomas.
Segundo as terapias behavioristas, o sintoma é uma deficiência. A questão da
psicanálise não é de acusar a mãe, mas de entender e tratar.
Os
sintomas de crianças pequenas são manifestos e claros. Não são velados por um
ideal ou por uma consciência moral super-egoica. Esses ainda não estão
estabelecidos no psiquismo da criança pequena. Frequentemente, seus sintomas
são meios de manifestar sua angustia ou eles respondem a angustia de seus pais.
Podem ser também uma tentativa de se proteger dos atentados de um pai ou de uma
mãe estressados, ansiosos ou exigentes.
Quando
a criança tem um encontro com um analista, pode falar do seu sofrimento e
distanciar-se dele aprendendo outra maneira de fazer. O sujeito constrói um
novo saber. A palavra dirigida a um psicanalista tem o efeito de afrouxar os
nós de significantes. O grande Outro define um lugar, o lugar dos significantes,
mas também define o lugar da relação que abre ao sujeito novas possibilidades.
O
desejo do Outro é um dos nomes do desejo dos pais que introduz a
pequena criança na particularidade daquele desejo. A psicanálise permite tratar
o laço do sujeito com seu Outro. Ela lhe permite se situar na sua
responsabilidade, no lugar daquilo que o faz sofrer e onde ela aloja o seu gozo
secreto.
A
partir da estrutura de linguagem de seu inconsciente, o pequeno em análise se
concebe como um sujeito numa relação com seus pais e com a historia de sua
família. A linha a seguir é a do desejo que se aloja aí.
A
determinação dos sintomas como um emaranhado de saber e de gozo
constitui uma marca segura para ver como são ligados, fixados, para satisfazer
o sujeito. Uma análise lhe permite esclarecer o que determina sua existência e
lhe oferece a possibilidade de fazer uma nova escolha com melhor conhecimento
de causa. Assim, a psicanálise defende e promove certa concepção de liberdade.
Em
nossa cultura a criança é um objeto essencial e maravilhoso e as mulheres
frequentemente escolhem a maternidade.
A
criança funda o casal e lhe da consistência. A criança é o elemento suplementar
que torna o casal numa família. Assim a criança se torna um sintoma do casal
dos pais. Mesmo em caso de divórcio os dois continuam ligados á criança.
Mesmo
casal homossexual quer filhos. Não é a diferença sexual que funda o casal, é o
amor. Para além do Édipo, Lacan coloca no cerne do casal o mal entendido e a
solidão de cada um e não mais a diferença sexual. Assim, ele funda uma
clínica do sintoma que é separada das normas. Esta clínica faz o sujeito
consistir nisso que amarra seu ser e seu gozo.
Há
casos que o sujeito sozinho quer um filho para si, sem passar por uma
experiência de casal. O desejo de criança é dissociado da sexualidade.
Criança
remédio p. 31
A
criança fica quando o amor do casal fracassa e ela vira o remédio para tal
fracasso.
Hoje
se desenvolveu o ideal de família como centrada na criança e no seu bem-estar.
Amor
não necessariamente protege a criança. Excesso de amor sufoca. Ele pode tornar-se
patológico, se não encontrar barreiras. A história da criança não começa com
seu nascimento. Ela se inscreve numa continuidade em relação ao saber inconsciente
(p.35).
Na
modernidade com o conceito de pais desaparece as diferenças das funções
de pai e mãe. É uma radicalização da ideia que consiste em não designar a
sexuação na função de pais. Mas ainda é importante manter a diferença entre a
função pai e a função mãe.
Ics para Freud e para Lacan (p.48).
Freud
nos deixou um inconsciente reservatório de lembranças que teriam um efeito traumático
na vida do sujeito. A análise efetuaria a passagem daquilo que foi submergido e
esquecido ou recalcado para a consciência. Lacan percebeu o Ics não como
passagem para a consciência, mas como uma passagem para a palavra. Esta
palavra deve ser entendida por alguém, lá onde ela não podia ser lida por
ninguém. Era mensagem cujo código é perdido ou que seu destinatário está morto.
Por isso o Ics está além, está por vir. Não é um bolso de lembranças,
mas representa uma certa relação do sujeito com aquilo que ele sabe.
O
real de Lacan (p.54) designa o que não há possibilidade de se simbolizar,
aquilo que obstrui o movimento de tradução do imaginário na direção do
simbólico. Psicanálise é um encontro com uma pessoa que aposta sobre o Ics
e faz com que o sujeito possa se servir deste traumatismo que é o Ics.
(p.58)
O analista se faz o testemunha da verdade do sujeito (S2), esta é sua
função. Por isso ele ocupa o lugar do Outro da palavra, desde que ele dê
a palavra do sujeito sua carga de verdade. É um encontro com a causa
escondida, sufocada, camuflada, que funda a palavra do analisando. Deste modo,
o que retorna nas associações conduz o sujeito a dar um sentido àquilo que não
tinha sentido e foi empurrado e rejeitado. Trata-se de um trabalho de saber:
é um desejo de saber, um saber trabalhando, que comanda.
O
sintoma é uma mensagem. Pode ser o resultado de um recalque na neurose ou de
uma negação ou foraclusão, na psicose.
Na
psicanálise a criança está, em primeiro lugar, lá onde os problemas são
nomeados, e onde a criança não é considerada como submissa a seu sintoma, mas
como tendo uma responsabilidade no que acontece. O próprio sintoma pode ser
negado pela criança, na análise a função do sintoma é levada em conta,
reconhecida e tratada com sua dimensão causal, o que, frequentemente, alivia a
criança muito rápido.