“SERIA A PSICANÁLISE UM AUTISMO A DOIS?”


Imagem relacionada  Regina W. de Faria Osório

Lacan no seu último ensino não tem em Freud sua inspiração mas sim em Joyce, mais precisamente, na escritura de Joyce, o que leva Miller a dizer que Joyce “despertou Lacan de seu sonho dogmático” por ter Joyce “o privilégio de haver chegado ao extremo de encarnar nele o sintoma” [conferência “Joyce o sintoma” - anexo Seminário 23]1
Qual a novidade que o estudo da escrita de Joyce aporta à teoria Lacaniana?
O que podemos entender deste último ensino que não tem mais dogmas, verdades como nos diz Miller?
Se não temos dogmas, temos hipóteses. Lacan depois de investir em Joyce e em sua escrita reconhece o que nomeia inconsciente real, o inconsciente opaco. E em seu próximo seminário, L’Une Bevue, formula a seguinte proposição: “quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente”.
O que temos aqui? Uma mudança quanto ao foco do que se coloca como questão para a psicanálise. Esse impasse apareceu para Freud em seu segundo momento teórico, diante da persistência do sintoma depois da interpretação. Já para Lacan, o resto sintomático, o que no sintoma fica fora do sentido é nomeado de gozo do ser falante, o parlêtre. O sujeito do incosciente é aqui entendido como o parlêtre – conceito que designa, ao mesmo tempo, sujeito e inconsciente.
 Lacan reconhece também que este gozo é anterior ao sentido que o sujeito vem a lhe dar depois. Este gozo é produzido pelo significante que produz um acontecimento, um trauma que se repete e se reitera sem sentido, se não alcança uma interpretação para o reconhecimento de si mesmo, o que o leva afirmar que “se fala só porque sempre se volta a dizer uma e a mesma coisa”. Lacan em seu último ensino vai então reconhecer o que chama de materialidade da palavra, o autismo da palavra que o leva a interrogar-se: “seria a psicanálise um autismo a dois?”
Vamos nos aproximar desta interrogação!
Miller neste capítulo do livro O Ultimíssimo Lacan[1] recorre aos achados sobre o autismo encontrados na clínica de Rosine e Robert Lefort, teorizados em seu livro “O Nascimento do Outro”. Apoiados na clínica de crianças, afirmam e mostram precisamente como o Outro do sentido se constrói a partir de Um-corpo. Postulam ser o autismo o estatuto nativo do sujeito. Uma categoria como a neurose, psicose e perversão.
Rosine e Robert Lefort colocam o autismo como uma categoria clínica fundamental. Miller enaltece seus achados teóricos por estes possibilitarem um entendimento para o último ensinamento de Lacan onde encontramos uma mudança quanto à noção do estatuto do inconsciente! Isto é, a passagem da noção do inconsciente transferencial para a noção do inconsciente real.
A descoberta freudiana, o Incosciente, é uma hipótese que se transforma em saber por sua transferência com Fliess! Freud na solidão do inventor, estabelece seu saber enlaçando-se ao suposto saber, lugar que sua relação com Fliess oferece para estabelecer um saber quanto a sua descoberta, o inconsciente (unbewust), para postular um novo campo de saber, a Psicanálise.
Na clínica psicanalítica lidamos com a palavra falada, a “talking cure”, e com a transferência encontramos as manifestações do inconsciente, lapsos, equívocos e o sintoma. Na transferência se dá a operação analítica e Lacan, no seu retorno a Freud, nos diz em Televisão [1974]: “a relação com o sujeito suposto saber é uma relação sintomática do inconsciente”. Estamos até aqui, então, no tempo do inconsciente estruturado como uma linguagem, onde, por conta do enlaçar do S1 com o S2, escutamos o inconsciente e temos o sujeito que consiste no saber dos significantes e o sujeito a quem este saber é suposto para então enlaçar-se a um significante qualquer, sobre o denominador do saber suposto, para então uma intepretação revelar sentido! Aqui operação analítica circula em torno de significantes em uma harmonia sustentada por um Simbólico que organiza a função do gozo, do sem sentido, embora em 72/73 no seminário 20: encore, Lacan já tenha a noção de real, mas um real que tem um saber, não temos ainda o real sem lei do último ensino lacaniano!
Assim para Freud como no primeiro Lacan, temos a operação analítica ancorada no inconsciente transferencial que supõe a ligação entre S1 e S2, para apenas no último Lacan. Depois do seminário 23: o Sinthome, encontrarmos a noção de um “inconsciente que se desvanece e fala só”, o inconsciente Real.
Assim, afirma Lacan: “quando o espaço de um lapso já não tem nenhum impacto de sentido {ou interpretação}, só então temos certeza de estar no inconsciente”, este é o inconsciente real que Lacan confessa ser sua resposta sintomática à descoberta freudiana. No inconsciente real “encontramos uma disjunção entre o inconsciente e a interpretação, uma exclusão entre essas duas funções”.[2]
Ao reconhecer que a materialidade do significante que funda o Mesmo fora do Sentido, razão da opacidade de um e de outro inconsciente falante, Lacan depara-se com um impasse teórico correlato ao {impasse do encontro entre os corpos sexuados por reconhecer que há dois um-corpo o que o faz propor} aforisma “não há relação sexual” que nada mais é que reconhecer que não há relação linguística possível no encontro dos sexos ou de dois “Um-corpo”.
Daí a questão, Seria a psicanálise um autismo a dois?
Para avançar este impasse, Lacan promove um novo conceito lalingua, para reunir a ausência de sentido inaugural do parlêtre.
Assim tendo como fundo a referência ao autismo como teorizado pelos Lefort, temos agora a noção de um grande Outro a deixar de ter uma anterioridade que seria a onipresença do simbólico, para termos a hipótese do último Lacan, se há psicanálise o que temos é Um-corpo e Lalingua!!
Lalingua não é linguagem, linguagem é um ordenamento de lalingua. Ela mostra a palavra tomada materialmente, quer dizer foneticamente. Entendida desta forma ela forma um par de opostos binários com a escritura. Ela absorve o que se diz e por isso não tem um negativo, mas sim, é fonte de equívocos e Lacan promove o equívoco como o procedimento interpretativo maior!!
Entramos no tempo de uma orientação materialista para a psicanálise. Para exemplificar a materialidade da palavra, Miller discursa apoiado no Google, um quase Deus onipresente que teria todas as respostas, mas que de fato a resposta, o sentido, é o leitor que imprimi.

O Google bem exemplifica a materialidade do significante e esta noção de matéria, orientação do último Lacan, é fundamental porque funda para o significante a identidade do mesmo fora do sentido, enquanto a noção de sentido funda o Outro. Você manda uma palavra procurando o sentido dele e vem uma enxurrada de possibilidades. Ele reina sobre a matéria significante, mas está totalmente fechado ao sentido. Ele cifra sem poder decifrar.
Aqui chamo atenção para o uso do termo simbólico no sistema teórico de Lacan.
No seminário 10: a angústia e depois no seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan formula uma harmonia no sistema onde a significantização do corpo supunha que o “corpo seria dócil ao significante, se deixa fazer pelo significante. Tratava-se de um mecanismo de transubstancialização e o mesmo se daria com o movimento inverso de incorporação de significado”.
O ultimíssimo ensino questiona esta harmonia.
 Entre o simbólico e o corpo, estava a pulsão. No seminário16: de um Outro a Outro, Lacan coloca o gozo em relação com a pulsão para depois dizer que o gozo é o real. Mas é o real que volta sempre ao mesmo lugar, que é um real dominado pelo simbólico enquanto supunha que a pulsão representava o resultado da ação do significante sobre o corpo.
 Da tríade edípica freudiana, Lacan coloca os três registros, simbólico, real e imaginário. Assim “desloca a interpretação do marco Edípico para o marco borromeano privilegiando a escuta do sentido na leitura do fora de sentido”.[3] A mesma palavra pode estar em diversos contextos e se transforma em outra em função do sentido que cobra cada contexto. Agora, noção de matéria funda o Um Mesmo fora do Sentido enquanto o Sentido funda o Outro.
A ação do significante é por excelência o que altera no último ensino, o significante não tem mais este valor ativo marcando o corpo do falante. O significante entendido enquanto matéria tem um valor parasitário. O carácter de Lalingua, posso dizer.
Se Freud se choca com o real no que chama de restos sintomáticos, [3] é fazendo atenção ao sintoma e em especial à obra de Joyce que Lacan sustenta a noção do inconsciente Real. O Sinthome é este laço de todas as dimensões do parlêtre e vem antes do Inconsciente.
O simbólico suportado pelo significante para comunicar uma verdade, mente, como na Verneinung de Freud, onde temos que, para se falar uma verdade há de mentir. [1 Pg123] Lacan realça isto em sua escrita; materiel-ment.
Enquanto para Freud a resistência estava nos restos sintomático, vemos então com o último Lacan, que “este resto é o que está na origem mesma do sujeito, é de algum modo o acontecimento originário e ao mesmo tempo permanente, quer dizer o acontecimento que se reitera sem parar”[3] e por isso afirmar que a consistência do inconsciente é que sempre diz Uma e a Mesma coisa, o traumatismo puro da linguagem sobre o corpo, o que o fez interrogar:  Seria a psicanálise um autismo a dois?


REFERÊNCIAS
1- O Ultimíssimo Lacan, Paidós, cap. VIII.
Pg 132[“a encarnação é uma questão de corpo deslocado sobre o nome próprio, enquanto o nome próprio seria o significante ao qual corresponderia precisamente o Um-corpo, a consistência do Um-corpo”].
2- “O Inconsciente Real”, Opção lacaniana online – J-A. Miller.
3- “Ler um Sintoma”. Miller, artigo para o congresso de NLS.

5/07/2019.