Homenagem a Carlos Augusto Nicéas - "Um ensino ímpar"


[1] Vamos iniciar a segunda sessão do seminário do Conselho sobre a formação do analista, lembrando que o eixo da questão deslocou-se neste segundo semestre da supervisão para o ensino da Psicanálise na Escola. Lembrando também, e outra vez, que são vários os lugares de produção e de transmissão onde se efetua a formação para todo aquele que nela entra.
No que toca, porém, o ensino da Psicanálise na Escola, eu volto hoje à questão já levantada na sessão anterior deste seminário. Ou seja, na vez passada eu tinha anunciado a pergunta que eu me fiz e que tentaria começar a tratá-la hoje, aqui: haveria um ensino na Escola que, produzindo o seu efeito de formação, se mantivesse como uma marca de diferença na comunidade dos analistas, compreendendo essa comunidade não somente as Sociedades da IPA mas também as associações que, fora da Escola, se reclamam do ensino de Lacan para a formação de seus membros?
Essa questão, vocês se lembram, eu quis articulá-la à atualidade política do problema da formação do analista. Para isso nós começamos a considerá-la, na sessão anterior, com relação a dois textos de Lacan nos Escritos: "Variantes do tratamento-padrão" e "Situação da Psicanálise em 1956; assim como referindo-a aos textos contemporâneos que na ECF serviram de base à discussão da Conferência institucional de 7 de julho último. Pretendi também que aquilo que discutíssemos hoje sobre o ensino da Psicanálise na formação do analista da Escola, antecipasse e preparasse o debate da próxima sessão do seminário quando escutaremos e discutiremos a experiência que é a de alguns desta Seção da EBP-Rio de ensinar a Psicanálise na Universidade. Discussão que queremos orientar para que pensemos os efeitos desse ensino sobre a formação de nossos jovens analistas que lá a procuram, e sobre sua transferência à Escola.
Eu dei à minha intervenção de hoje neste seminário, um título: "Um ensino ímpar". E vou abri-la sublinhando em Lacan algumas de suas posições sobre a relação de seu ensino com a formação do analista.
Uma primeira e fundamental referência: "Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise", relatório de Lacan para ser discutido no Congresso de Roma em setembro de 1953 (Escritos, Seuil, Paris 1966), em cujas linhas iniciais do prefácio ele nos diz: "O discurso que se encontrará aqui merece ser introduzido por suas circunstâncias. Porque, delas, ele traz a marca".
As circunstâncias, nós já nos referimos a elas na sessão de abertura do seminário, quando retomamos o momento da crise eclodida por ocasião da criação do Instituto de Psicanálise da SPP com a fundação, em seguida, da SFP. A tarefa à qual se propõe Lacan nesse discurso de Roma é a de renovar na Psicanálise os fundamentos que ela retira da linguagem. O que ele faz rompendo com o estilo tradicional que classicamente situa um relatório "entre a compilação e a síntese, para lhe dar o estilo irônico de um questionamento dos fundamentos desta disciplina”.
Uma denúncia importante sobre a maneira de se ensinar a psicanálise em 1953, é introduzida imediatamente por Lacan, assinalando que as formas iniciáticas e organizadas por Freud ao criar a IPA, para que seus analistas formados por elas pudessem defender a causa da Psicanálise contra a sua prática selvagem, reduziram-se em seus Institutos a um puro formalismo: "As regras técnicas, diz Lacan, assimilaram-se a receitas, fechando à experiência todo o alcance de conhecimento e mesmo todo critério de realidade". Daí, anuncia Lacan, a urgência da "tarefa de resgatar nas noções que se amortizaram num uso rotineiro, o sentido que elas reencontram tanto num retorno à sua história quanto numa reflexão sobre seus fundamentos subjetivos". O que o faz concluir que operando esse retorno e desenvolvendo essa reflexão, ter-se-ia definida a função daquele que ensina, função "da qual todas as outras dependem”.
Lacan se decide então, em 1953, por começar o ensino que durante dez anos o manteve semanalmente diante de seu auditório, a promover um retorno ao sentido de Freud. Foi então o inconsciente freudiano, enquanto referido a uma prática, que serviu de indicador a Lacan para inaugurar o seu ensino. À hipótese de ser esse inconsciente freudiano estruturado como uma linguagem, ele se dedicou a partir de então a demonstrar, formulando em seu nome próprio um ensino.
Com Freud, para quem a Psicanálise, no início, antes da criação da IPA, se aprendia na experiência mesma da análise do analista, a formação conjugava, tão somente, convencer-se da existência do inconsciente e beneficiar-se nas análises, em conversas ou em trocas de cartas, dos ensinamentos do mestre fundador. Uma forma de ensino que transmitia, em permanência, na origem da expansão do círculo de analistas, primeiros alunos de Freud, os conceitos fundamentais da doutrina que iam sendo produzidos por ele numa interdependência necessária à manutenção da experiência.
Em 1953, na abertura do livro I do seu seminário, lição inaugural de 18 de novembro, Lacan evoca um mestre budista aplicado a imprimir ao seu ensino a técnica zen de interromper o silêncio "com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé”. Aos alunos desse mestre cabia procurar as respostas para suas próprias questões, já que esse mestre "não ensina 'ex-cathedra' uma ciência acabada", somente trazendo a resposta "quando os alunos estão no ponto de encontrá-la".
Essa maneira de ensinar interessa a Lacan precisá-la: "Este ensino é uma recusa de todo sistema. Ele descobre um pensamento em movimento - preparado, no entanto, para o sistema, porque ele apresenta necessariamente uma face dogmática". O que lhe permite, desde então, retornar a Freud: "O pensamento de Freud é o mais perpetuamente aberto à revisão. É um erro reduzi-lo a palavras gastas. Cada noção, nele, possui sua vida própria. É o que se chama precisamente a dialética".
Depois, ainda em 1953, e já se introduzindo nos comentários sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan se endereça aos representantes do seu grupo de psicanálise nestes termos: "Se vocês não vêm aqui para pôr em causa toda a atividade de vocês, eu não vejo porque vocês estão aqui.  Aqueles que não perceberiam o sentido desta tarefa, por que permaneceriam ligados a nós em vez de irem se juntar a uma forma qualquer de burocracia!”.
Relação estreita e já estabelecida, portanto, entre seu ensino e a formação do analista que o recebe. É que a Lacan interessava, na abertura mesma do seu ensino, denunciar, antes de tudo, o primeiro efeito da burocratização da formação do analista, efeito de redução das regras técnicas da Psicanálise à condição de "standards", deixadas de serem tratadas como as tratou Freud, à maneira de um instrumento que se tem bem posto na mão, como ele nos lembrava.
Lacan, que em 1946 já se tornara membro da comissão de ensino da SPP, desde 1951 começara a dar um seminário de leitura de textos freudianos em sua casa. Durante período compreendido entre o primeiro deles consagrado a Dora e o seminário sobre o Homem dos Lobos, ainda em curso no momento da crise da criação do Instituto, vários analistas em formação constituíam o seu público ouvinte. Foi sobretudo para esses alunos que até então recebiam sob essa forma o seu ensino, que ele endereçou o seu discurso de Roma.
Em 1953, ano da primeira cisão na comunidade psicanalítica francesa, um projeto de emenda aos estatutos propostos por Nacht para o Instituto de Psicanálise, foi encaminhado por Lacan, então seu diretor provisório, à Assembleia da SPP em janeiro de 53 para discussão. Projeto de emenda sustentado por uma "intenção evidente de conciliação", como observou JAM.
Esse projeto merece ser lembrado em suas linhas principais, uma vez que as ideias nele já sustentadas por Lacan, interessam a toda discussão em torno da natureza e da incidência do ensino da Psicanálise sobre a formação do analista. Ele é encimado por um título: "Exposição de motivos - Psicanálise e ensino”. E Freud é citado em exergue: "Se a gente tivesse – ideia que hoje parece fantástica - de fundar uma faculdade analítica, a gente ensinaria nela, claro, matérias que a Escola de medicina ensina também: ao lado da 'psicologia das profundezas’, a do inconsciente, que permaneceria sempre a peça de resistência, precisaria lá aprender, de uma maneira a mais ampla possível, a ciência da vida sexual, e lá familiarizar os alunos com os quadros clínicos da psiquiatria. Por outro lado, o ensino analítico abarcaria também ramos muito estrangeiros ao médico e dos quais ele não entrevê sequer a sombra no curso do exercício de sua profissão: a história da civilização, a mitologia, a psicologia das religiões, a história e a crítica literárias...".
O projeto reconhece a necessidade, na época, de dar ao ensino da psicanálise, um órgão onde exercê-lo, uma vez que existente desde antes da guerra, e fechada desde a sua declaração, cabia à SPP garantir até então, institucionalmente, o ensino da Psicanálise na França, respondendo às exigências de formar analistas. E entre as novas exigências que se apresentavam aos responsáveis pelo ensino da Psicanálise na França, depois da guerra "a passagem das psicoterapias para a escala dos fenômenos sociais" impunha já distinguir, segundo Lacan, os princípios da disciplina desfigurada por sua difusão e as regras que orientavam sua prática usurpada.
Mas a leitura desse projeto-emenda de Lacan também nos revela a sua preocupação com a política psicanalítica de direção do Instituto. Ele teme, com efeito, um perigo de desfiguração daquela nova e necessária “organização materialmente diferenciada" a ser criada pela Sociedade dos analistas. Ele insiste para que haja preservação da autonomia de uma comissão de ensino articulada com a direção do Instituto. Somente assim ele achava possível garantir uma transmissão da experiência, do analista formador para o analista em formação, transmissão que, para Lacan, "faz a virtude do gradus psicanalítico". Garanti-la, portanto, sob a vigilância de uma comissão de ensino autônoma e livre da incidência de toda política pessoal na direção do Instituto, era tão importante para Lacan quanto o era a não-formalização, nele, dos estudos. Com efeito, estes deveriam ser, no dizer de Lacan, "tão liberalmente concebidos quanto aqueles que conduzem a uma ciência que merece, entre todas, ser qualificada de humanista". O ensino teórico da Psicanálise não poderia, assim, e sobretudo, para Lacan, "limitar-se a um ciclo de conhecimento que a gente fecha uma vez por todas”. Enfim, para Lacan em 1953, a formação do analista deveria participar principalmente das pesquisas que fundam as categorias de uma experiência analítica e que ele resume em número de quatro.
A primeira delas, certamente ele a refere à sua própria experiência ensinando a Psicanálise: o comentário dos textos originais de Freud, “a mais segura via e a mais racional” para se alcançar e manejar os conceitos fundamentais da experiência. Lacan, desde então, fazia, no entanto, valer a exigência de que as noções freudianas tivessem sempre o seu valor ressituado no contexto em que elas surgiram, isto é, enquanto geradas num momento dado, quando se fizeram “indispensáveis a Freud porque elas traziam uma resposta a uma questão que ele tinha formulado antes noutros termos”, como ele diz na abertura do seu primeiro seminário.
A segunda categoria que funda a experiência do analista em formação, Lacan a vê no aprendizado supervisionado da técnica “onde o estudante pode reconhecer a função criadora da práxis e o valor da análise como ciência do particular, pondo à prova, na duração de uma experiência, a relação das regras com seus efeitos no caso”.
A terceira categoria é a crítica que, subordinada aos dados analíticos, questiona “tanto as normas da psicopatologia clássica, quanto o valor efetivo da própria intervenção técnica”.
Finalmente, uma quarta categoria nos fundamentos da formação analítica: a extensão do seu campo. A psicanálise com crianças, de uma clínica dita ainda, em 1953, a ser definida, seguramente se apresentava na época como “a fronteira onde se oferece à psicanálise o que de mais desconhecido existe a se conquistar”.
Por outro lado, a não-formalização dos estudos no Instituto que ocupa e preocupa Lacan em 1953, ele a concebe como uma vantagem essencial: é favorável ao analista em formação o fato dele “não participar das exigências formais de assiduidade e de exames que, por se exercerem talvez um pouco em demasia nos nossos dias nos estudos superiores, mostram suficientemente que elas degradam o estilo sem elevar o nível”.
E quanto ao programa freudiano geral para a formação do analista, composto de matérias várias e imprecisamente relacionadas, o intento de Lacan não foi o de alinhar apenas a teoria psicanalítica entre os saberes já reconhecidos mas, desde o início de seu ensino, ao contrário, o de reunir e questionar esses saberes visando torná-los afins à psicanálise. Como ele o fazia? Pela via indicada por ele mesmo como sendo "a única formação que nós possamos pretender transmitir": um estilo.
Anos depois, nós sabemos, a solidariedade entre a enunciação de Lacan e a resposta dada ao seu ensino pelos ouvintes do seu seminário, firmou-se ainda mais com a produção dos matemas e com a formalização dos quatro discursos. Antes porém, ainda em 1964, uma vez já tendo acontecido a segunda cisão na comunidade psicanalítica francesa, também editada e documentada por JAM num volume intitulado "A excomunhão", Lacan, no Seminário livro 11 do seu seminário Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, já tinha reafirmado que seu ensino permanecia, como antes, tendo a mesma finalidade: formar analistas. Ou seja, perseverar à frente do seu seminário, ensinar a psicanálise como ele o fez e do modo como fez, era continuar a oferecer aos seus alunos um ensino produtor em permanência de efeitos de formação. E porque o seu ensino, em 1964, como em 1953, continuava avançando sem ser movido por um ideal de formação acabada, o analista que dele se beneficiava só podia ser dito em formação permanente.
Mas a concepção de Lacan do modo de ensinar a Psicanálise não deixa, no entanto, a formação do analista sem uma articulação institucional precisa. Assim, se ele disse que cada um na Escola pode ensinar a seu próprio risco, ele também afirmou que a sua Escola dispensa uma formação. Por isso, ao fundá-la em 1964 para garantir essa formação, nós o vemos naquele momento usar de um argumento de autoridade para proclamar que a formação do analista depende do seu ensino.
De fato, no Seminário livro 11, depois de se autorizar a continuar falando dos fundamentos da psicanálise, pelo fato de durante 10 anos ter cumprido "o que se chamava um seminário que se dirigia a psicanalistas”, ele estabelece nestes termos a relação do seu ensino com a formação do analista: "Quanto aos fundamentos da psicanálise, meu seminário, desde seu início, estava, se eu puder dizer implicado neles. Ele era um elemento deles uma vez que ele contribuía a fundá-la “in concreto”, já que ele fazia parte da própria práxis, pois ele estava em seu interior, pois ele era dirigido para aquilo que é um elemento dessa práxis, a saber, a formação de psicanalistas”.
Assim, depois da excomunhão, depois da censura que se abateu sobre o seu ensino, proscrito como nulo para a habilitação de um analista, e exigido ser para sempre banido de sua formação, e em oposição aos que quiseram manter separados ensino e formação, Lacan se pôs uma vez mais, em 1964, na mesma posição de servir ao discurso analítico para que este vencesse – como ele dirá nos tempos da Dissolução – na mesma posição de nos reintroduzir à mesma questão: “o que é a psicanálise?”.
O que se seguiu, a gente sabe, até o final de sua vida ele ensinou a Psicanálise jamais desfazendo o nó que mantinha solidários ensino e formação do analista. Por isso, em outubro 1976, quando ele aceitou apresentar a edição de JAM da cisão de 1953, ele pôde escrever cinco frases apenas, curtas, das quais a primeira é esta: "Eu ganhei, sem dúvida. Pois eu fiz escutar o que eu pensava do inconsciente, princípio da prática".
A questão quanto ao ensino da Psicanálise na Escola, quando nos dispomos, reunidos nestes seminários, a interrogar outra vez a formação do analista, me aparece assim: seria verdadeiro afirmar, hoje, que na Escola a formação do analista guarda ainda essa dependência essencial do ensino de Lacan, ensino cuja finalidade, no mesmo Seminário livro 11, ele qualificou como sendo transferencial?
Acredito que podemos dizer que sim, que essa mesma solidariedade entre ensino e formação do analista nós a reencontramos mantida na Escola sob a orientação lacaniana do ensino de Jacques-Alain Miller. E é de nossa relação com esse eu gostaria agora de falar, falar nesta noite da importância de sua orientação sobre a nossa formação permanente.
Para falar disso eu começo com Lacan, depois da Dissolução numa “Segunda carta do Foro", falando de sua nova Escola ao convocar seus alunos – “aqueles que ainda me amam” – para, nela, constituírem “o núcleo a partir do qual é possível que o meu ensino subsista”.
Em "Enciclopédia" (Ornicar? 24, 1981), JAM retorna a esse ensino de para nos lembrar como ele, não querendo inventar outra vez a Psicanálise, apenas colocou o começo do seu ensino sob o signo de um retorno a Freud pois era preciso responder a uma questão: em que condições a psicanálise é possível? Miller, no mesmo "Enciclopédia", nos lembra ainda que Lacan para nos ensinar isso, obrigou-se a dar conta de sua prática publicamente e a cada semana.
Ao reler em “Enciclopédia” essas notações de Miller, voltou-me à lembrança um momento do Seminário 11, no qual Lacan, por sua vez, nos lembra como os pós-freudianos passaram a dirigir seus tratamentos em nome de suas particulares teorias: Abraham, Ferenczi, Numberg, cada um desvelando por elas o que desejam que seus pacientes façam deles, mestres, portanto, de teorias inconciliáveis mas consagradas como saberes partilhados por uma mesma comunidade de analistas. Comunidade assim transformada numa Babel, no dizer de Lacan.
Em julho de 1998 em Barcelona, na quarta parte do seu relatório à Assembléia Geral da AMP, sob a acusação de não querer separar direção e orienação, JAM retomou os modos de articulação do UM e do múltiplo na IPA e no Campo freudiano. Particularmente, ele concebeu que para a IPA o “standard” é o seu “cimento unitário”, enquanto que no Campo freudiano o Um se exprime "no que chamamos, sem ter estabelecido seu conceito, a orientação". Enfatiza Miller: "A orientação e não o Standard". É importante ter essa diferença muito claramente estabelecida entre nós.
“A Orientação e não o Standard”. Querendo então nos fazer compreender “porque fomos levados à noção e à prática da orientação", Miller nos reenvia aonde, “para dar-lhe uma definição apropriada"? Ao movimento lacaniano em sua origem mesma, isto é, ao "gesto inaugural de Lacan" ensinando-nos, desde o início, a restaurar o campo da palavra e a função da linguagem na descoberta freudiana.
Eu isolei alguns desta mesma quarta parte do relatório de Miller. E vou lê-los agora na articulação que eu lhes dei.
“Quando se fala de “retorno a Freud", diz Miller, ainda não disse nada: foi um slogan, um significante mestre, ao qual o sentido só vem do significante do contexto ao qual se articula. O “retorno a Freud”, ostentando uma significação regressiva, conservadora, ortodoxa, era só de fachada, para proteger a investida inovadora de Lacan da acusação de desvio mortal, num campo onde a referência ao fundador constitui um shibolet obrigatório (...). Na realidade, tratava-se bem outra coisa: Lacan voltou a Freud como à língua comum da psicanálise (...). Resumindo, o significante do “retorno a Freud” toma seu sentido do significante “Babel” com o qual Lacan designinava o estado da comunicação no movimento psicanalítico. (...) “Retorno a Freud” quer dizer re-elaboração a partir de Freud de uma língua comum na psicanálise. (...) Desde sempre, desde a origem, a orientacão é a anti-Babel, é a possibilidade da comunicação dos psicanalistas entre eles e com o público, com a "esfera pública", é a busca da grande Conversação Analítica (...). A Conversação analítica começou com Freud. Prosseguiu com Lacan, e por nossa vez, nós a continuamos com o Campo freudiano. Começamos a falar juntos em 1980 (...). Assim fazendo, damos sequência à Grande Conversação freudiana, inscrevendo-nos na anti-Babel de Lacan”
Essa declaração de Miller reinscrevendo-se, em 1998, depois de Freud e de Lacan, na tarefa de restabelecer a Conversação que se opõe à "multiplicação das línguas especiais”, eu gostaria de colocá-la não em paralelo, mas em prolongamento do ensino de Lacan, porque a orientação, como o próprio Miller nos lembra, "é dita lacaniana por ter sido Jacques Lacan o primeiro a debater com Freud, e por nos ter deixado a única língua comum existente na Psicanálise". A orientação sustentada, depois de Lacan, por Miller, semanalmente, em seu seminário das quartas-feiras, é sua resposta permanente à aposta de Lacan de que o seu ensino subsistiria em sua nova Escola.
O seu ensino, Miller o desenvolveu, primeiramente sob a forma de cursos consagrados à coerência sistemática do ensino de Lacan, durante sete anos, de 1972 a 1979. Depois de uma interrupção de dois anos ele voltou para retomar, sob sua responsabilidade, a orientação lacaniana da Escola, tomando como ponto de partida uma urgência: a promoção de um outro Lacan (curso inédito de 1982, "Sintoma, fantasma e retorno"): "Eu parei a série na junta desta década (...). Aconteceu também que nessa junta eu me engajei na prática da psicanálise. E sobretudo que Lacan está morto. Então, isso me levou, no ano passado, a iniciar uma segunda série do ensino de Lacan”.
"Eu me engajei na prática da psicanálise". Uma autorização que o faz suportar a orientação, agora, não somente para ensinar a psicanálise como um mestre entre outros mestres, mas para prossegui-la sabendo, como analista ensinante, quem opera na experiência. Assim, nos anos oitenta, Miller se autoriza a tomar para si o encargo de re-elaborar permanentemente, depois de Lacan, a língua comum da Psicanálise. Não seria exagerado supor que, a partir desse momento, tendo se engajado na prática da psicanálise, o seu ensino tenha se tornado em consequência, para ele, assim como o foi para Lacan, a cada semana e publicamente, um mesmo prestar conta diante do seu auditório de sua prática como analista.
A orientação, Miller o diz, só lhe interessava se ele não tivesse de desenvolver o ensino de Lacan como uma dogmática: "Aliás, eu creio que isso não é possível. Isso só pode ser desenvolvido como uma orientação, quer dizer, como um caminho, ou um traçado, pode-se mesmo dizer como um progresso se a gente entende precisamente por aí que isso não permanece imóvel. É assim que eu me esforço para assumir, adotar o que Lacan pôde formular em suas variações. Porque eu tenho o ponto de vista da orientação, eu posso tratar os ditos de Lacan que, considerados do ponto de vista dogmático, seriam puramente e simplesmente contraditórios. Esses ditos só encontram sua função do ponto de vista da orientação" (curso inédito "1, 2, 3, 4, ...", lição de 14/11/84).
Vamos nos aproximando do final desta sessão do seminário para que possamos ter ainda, algum tempo para conversar.
Ensinar a Psicanálise impôs-se a Lacan porque era preciso abordá-la a partir do seu próprio campo. E esse campo, campo freudiano, encontrou com ele sua definição. A orientação lacaniana, ação específica de JAM na Escola, é aquela, portanto, que, recusando todo "magister dixit", recria e reelabora, em permanência, o próprio campo da Psicanálise.
As relações dos analistas na Escola com esse ensino ímpar de JAM mereceram recentemente um testemunho e um comentário interessantes de Juan Carlos Indart, membro da EOL. Em Opção lacaniana, n. 26, de dezembro de 2000 ele nos fala de um fato novo acontecido numa experiência partilhada de estudos de textos. Para muitos, a leitura de Miller reduzira-se, há um certo tempo já, segundo Indart, a procurar rapidamente em seu texto, respostas às interrogações que eles se punham, quando liam Lacan ou Freud. Comentar e discutir um curso de JAM durante todo um ano trouxe novidades à experiência de cada um: começar a interrogá-lo "revelou-se para nós que o pensamento de Jacques-Alain Miller não é fácil. Não se trata dessa famosa facilidade para resolver um ponto complexo em Lacan, mas sim de que própria textura lógica de seus cursos provocou entre nós uma disparidade grande de pontos de vista, uma diversidade de leituras e, inclusive, retornos a um modo de ler que acreditávamos estar superado e que veio à luz intacto”.
No quarto curso da segunda série de sua Orientação lacaniana, "1, 2, 3, 4, ...", JAM nos lembra que no dicionário francês, desde 1834, a palavra orientação equivale à arte de reconhecer o lugar onde estamos. Mas ele nos faz saber mais alguma coisa sobre o que é uma orientação. Ela é uma direção, é o fato de dar um movimento, é o fato de sustentar essa direção. Orientação lacaniana foi, por isso, o nome que ele mesmo deu às suas duas séries de ensino, a primeira, interrompida depois de sete anos, a segunda, a que continua até hoje. A direção, é a direção que Lacan imprimiu à Psicanálise, à prática psicanalítica e ao movimento psicanalítico.
Miller representa a orientação por um vetor, por um segmento munido de uma orientação, para afirmar a orientação como fator de diferenciação: "Há mais numa figura geométrica orientada do que numa figura que não o é". E ele desenha, numa das suas lições, para ilustrar essa diferenciação, um círculo não orientado e dois outros círculos orientados em direções contrárias.
Eu penso isto: nós não somos um círculo não-orientado, e nem somos somente aqueles que, embora orientados, só reconhecem o lugar onde estão, ainda que este lugar se chame Escola. Nós nos representamos enquanto diferenciados por uma orientação. Nós temos, na Escola, o nosso fator de diferenciação. E essa diferenciação, eu acredito, pode ser testemunhada e reconhecida.
Por hoje, e à guisa de conclusão, eu lhes deixaria com este pensamento que me veio agora: pensei naqueles que puderam fazer a sua análise na Escola e que puderam ter supervisionada, nela, a sua prática clínica. Muitos deles escolheram e puderam partir, deixar a Escola, decidiram fazer outros agrupamentos. Certamente, formados como eles o foram, os grupos para os quais eles se foram, serão enriquecidos com o trabalho deles, com a transmissão que, lá, eles fizerem. O que eles não poderão certamente transportar é esse ensino do qual Lacan fez depender a própria formação do analista, e que sob a orientação de JAM subsistiu na Escola. Que tenhamos na Escola esse ensino que continua, portanto, e em permanência, a fundar "in concreto" a Psicanálise para a qual ela nos forma, é o que, sem dúvida, nos mantém, junto aos outros, diferentes na comunidade internacional dos analistas. Não só com relação à IPA, já dissemos, mas com relação, também, àqueles que, mesmo se reclamando do ensino de Lacan em sua formação, subtraem-se, hoje, à marca da direção milleriana para os tempos e o destino atuais da Psicanálise.
Vamos conversar?





[1] Transcrição da segunda sessão do seminário do Conselho da EBP-Rio coordenado, a convite do Conselho, por Carlos Augusto Nicéas (EBP-SP), em setembro de 2001.

Texto extraído da Revista impressa Correio nº35, ano 2001, da Escola Brasileira de Psicanálise.