EL Ninõ y su Familia - Um comentário por Ana Maria Ferreira sobre a Entrevista de Sílvia Tendlarz a Éric Laurent



"Família" - Lasar Segal
Pintor lituano-brasileiro (1891-1957)

Comentário de Ana Maria Ferreira da Silva sobre o Prólogo do livro El Ninõ y su Familia -  Uma entrevista de Sílvia Tendlarz a Éric Laurent, realizada em 2 de abril de 2018.

El Ninõ R.S.I
Laurent inicia falando que o interesse do tema do livro se dá a partir das novas configurações familiares e o lugar que a criança ocupa nelas, a partir do século XIX e principalmente no século XXI, quando essas novas configurações familiares estão “remodeladas” pela eficácia de novas formas de procriação, desde a introdução da pílula na 2ª metade do séc. XX, depois com a procriação medicamente assistida do final do séc. XX e agora com as novas técnicas que tem modificado a maneira como a criança era concebida, do acaso, sem controle, substituída por um número menor e mais calculadas, planejadas, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Estas questões fizeram com que Laurent e outros, como Nouria Gründler, François Ansermet e Dominique Laurent, realizassem um curso intitulado: “Disrupções na filiação, a procriação e o gênero”. Estes termos “renovam o estatuto da criança de uma maneira diferente da família patriarcal, ideal do século XIX, especialmente de Freud”, que atribuía um caráter lógico do Édipo, independente dos modelos familiares, sustentando a ideia de um ideal de criança. Na atualidade, estamos mais além do ideal, temos muitas formas de famílias e de filiações e também a escolha do gênero das crianças. Isto produz outros tipos de problemas e desloca a clínica do que é a criança e seu lugar na família para fora do discurso analítico. Laurent comenta, na página 10 deste prólogo, que ao explorar essas novas configurações de família, também explora a reconfiguração do discurso analítico.
Lacan, a partir dos anos 60, “distinguiu os pais da realidade, que às vezes, se pode chamar pai real, e o pai simbólico, NP, o pai deus”. “Isto introduz uma hiância entre esses 2 personagens. Esta é a razão pelo qual o pai, em nossa civilização é um ser fraco, que manca” – onde há uma desarticulação entre ‘o comum do pai da realidade com suas peculiaridades e o que tem a função de articular o simbólico, função muito mais além desses pais da realidade” e esse contraste segundo Lacan, faz que todos delirem. “A garantia do nome do Pai não funciona”. Em “Nota sobre uma criança”, Lacan diz que a família é algo real. Segundo Laurent, há uma tensão muito grande no ensino de Lacan entre a família como um real e o pai como algo simbólico, principalmente no final do séc. XX e no atual séc. XXI, em todas as formas de articulação entre as famílias e as tecnociências sobre a filiação. Prossegue dizendo que isto determina que hoje se fale mais de “parentalidade” que de paternidade. A parentalidade trata-se de um neologismo do discurso do amo do final do séc. XX, que “concerne ao lado real da família”, que se refere a todas as classes de família para não falar de pais, “por não se saber se são pais, mães, mães de adoção, de gestação ou de substituição”. “A família que se apresenta em nossa clínica é muito mais real que simbólica. A lei que acolhe os imigrantes é separada da dimensão simbólica, “é uma forma real de fazer formas de famílias que podem acolher todas as novas produções de criança”.
Laurent argumenta que os distintos artigos deste livro tratam dos aspectos da tensão entre a criança definidos a partir de seus estatutos simbólicos, como ideal do eu ou ideal da família, ideal para os pais, especialmente para a mãe e a criança muito mais objeto da família, produzido por esta família real, objeto calculado, produzido, muitas vezes por leis estatais, como na China, onde a produção de um único filho leva os pais a depositarem todas as esperanças nessa criança, levando esta, por vezes ao suicídio, caso não consiga corresponder às expectativas da família. Trata-se de uma relação particular com as exigências da civilização.
>Silvia Elena Tendlarz, marca que Laurent, em seu livro O reverso da biopolítica faz um giro em suas reflexões sobre a psicanálise, sobretudo em relação como um sujeito pode ser sintoma de outro corpo. Como pensar a criança como sintoma de outro corpo, seja do pai ou da mãe? Isto modificaria o lugar da criança como sintoma do casal parental ou o lugar da criança na fantasia ou fantasma materno? Em Lacan havia alguma modificação nas últimas reflexões sobre o sinthome?
>Laurent. Há uma modificação em relação à abordagem clássica da significação fálica. A configuração Freudiana, a configuração fálica passa, no menino, pela ameaça da castração pelo pai (-phi) e define, depois, uma significação fálica positiva na qual o menino se aloja. Quanto a menina passa pelo amor, há uma mudança do objeto de amor da mãe para o amor ao pai e neste caso não se trataria de uma ameaça da castração, senão da perda de amor.
Lacan, depois de formalizar logicamente o drama edípico, a partir do seminário da angústia, fala de uma angústia vinculada não tanto ao falo como objeto ameaçado, mas uma angústia de separação a partir da maneira como se separam os objetos do corpo. Estabelece uma significação fálica sem passar pela metáfora paterna da lógica do édipo clássico. Passa pelas versões do objeto “a”, as separações que a criança tem podido fazer de seus objetos e o valor do objeto “a” que tem para a mãe. Isto determina o valor fálico. Isto desloca a prática clínica com criança, o que se quer obter de uma análise com crianças: versões do valor fálico, as coordenadas das versões do objeto “a”, que permitem indagar e obter este valor fálico que é também encarnado pelo objeto transicional como dizia Winnicott, esse objeto que circula, que faz cópula entre a criança e a mãe e a própria criança pode ter valor de objeto para a mãe. Mas utilizá-lo como instrumento é uma etapa no horizonte do que se interroga como “ele ser o sintoma de outro corpo.
“Ser o sintoma de outro corpo”, no ensino de Lacan é a posição da mulher, ser sintoma do corpo do homem. No ensino clássico a mulher tinha um valor fálico para o homem.  O uso do pênis com valor fálico se dá se houver disposição subjetiva do homem em aceitar, reconhecer e admitir, amar o fato de que o falo de seu corpo é a parceira. Posteriormente, Lacan a faz ser o falo sintoma, sintoma à decifrar, enigma para um homem. O gozo fálico entra na categoria do parceiro sintoma. A mulher, sintoma de outro corpo desloca toda uma série de questões.
A báscula fundamental na obra de Lacan é de reinventar a psicanálise não mais do lado dos valores masculinos mas dos valores femininos, a partir do gozo feminino. Questões como as observações clínicas que situam a criança no seu valor fálico para uma mulher. Isto significa, para Lacan, que todos os objetos de amor de uma mulher são objetos separados, se separam dela. É o motivo pelos quais elas não estão tão aferradas como os homens a ter o gozo do proprietário. Elas não têm medo de perder algo como os homens, seus objetos separados que vão para o mundo não produzem a mesma angústia, a angústia é mais real na exigência de amor dos objetos separados.
A partir dessa visão de Lacan em “Nota sobre a criança” ele trabalha a criança, não somente como objeto falo da mãe, senão como objeto “a”, carga de objeto de gozo. Esta direção permanece até o seminário R.S.I quando ele define um pai não como primeira identificação a partir do amor a esse pai. Lacan faz do amor do pai algo que passa pela maneira como ele se ocupa dos objetos “a” de uma mãe. “Um pai, só tem direito ao respeito, ao amor se está père-versamente orientado, quer dizer, faz de uma mulher objeto que causa seu desejo. No entanto, o que a mulher a-colhe, se ocupa, é de outros objetos “a”, que são seus filhos”. (Seminário R.S.I, lição de 21 janeiro 1975). Nessa nova configuração, o pai tem uma dignidade porque é ele o que pode fazer uma operação que dá um lugar de mulher a uma mãe. A mãe se ocupa dos objetos “a”, causa do desejo, seus filhos, que ela produziu. Enquanto o homem, diz Lacan, só é digno do amor e respeito porque faz uma metáfora particular com esta mãe que enquanto mulher causa seu desejo. Logo, para Lacan, o amor ao pai não passa pela identificação, é uma dedução que vem a partir de uma operação que se efetua ou não. Se o homem faz essa alquimia, se produz o fenômeno “amor ao pai”.
Nas novas constituições familiares, este não pode ser o único horizonte, a única solução: manter uma família unida e clássica, ou confundi-la com o real da família, que articula de uma maneira nova como o homem que faz de uma mulher a causa de seu desejo está articulado na família. Clinicamente, há novas demandas de famílias e de crianças imersos em uma família muito diferente do que era o ideal imóvel.  
>Silvia Elena Tendlarz: Como situar a criança na oposição clássica entre sintoma e fantasma?
>Laurent: Importante aprofundar esta oposição sintoma-fantasma. Lacan fez a distinção entre a criança sintoma do casal e a criança objeto do fantasma materno. Isto foi muito útil e é um instrumento clínico determinante porque dizer sintoma do casal desloca também o drama e não é o drama o que está em jogo, sim como se articulam enquanto casal em sua dimensão real.  A criança sintoma de um casal é o valor de como se articula uma configuração RSI, uma configuração real, simbólica e imaginária, aspectos muito mais além das formas legais do matrimônio.
Laurent considera que a criança não é somente objeto do fantasma materno, senão sintoma da mãe, ou seja, a oposição sintoma - objeto do fantasma em sua relação com a mãe e isto permite definir e articular melhor a oposição real, simbólica e imaginária da criança em sua relação com a mãe. Isto, Lacan trabalhou ao final do texto “Nota sobre a criança” quando assinala que as mulheres têm seu objeto em uma dimensão real, não apenas imaginária e simbólica. Isto permite definir um valor de gozo, um gozo que é mais o gozo feminino nas mães, mais além do valor fálico. Para definir mais precisamente este valor real do objeto, necessário se articular sintoma e fantasma do lado materno.
Laurent diz que isto faz parte da renovação do discurso que temos elaborado em relação a esses pontos. A clínica tem que considerar a relação da criança com sua mãe ou da criança com os pais na dimensão da “invenção”, o mesmo que se produz com os pais na parentalidade. Essa invenção é a porta de entrada através da qual o terapeuta depois pode tratar de amplia-la ou alojar-se. A partir do que foi a primeira definição da relação positiva da invenção se pode ordenar a montagem real, simbólico, imaginário com os pais.
>Silva: Gostaria de pergunta-lhe sobre a expansão do mundo virtual. Que relação tem entre a criança e sua família? E em contraposição a isto, como atua entre eles os processos segregativos que são cada vez mais estimulados na atualidade?
>Laurent: Efetivamente são duas coisas que caminham juntas. A nova articulação da criança com suas telas, introduzidas na idade muito precoce, serve de janela a um mundo completamente globalizado, um sem limite. Por outro lado leva ao acesso a segregações reais maciças, onde as crianças não têm mais nada em comum, sendo a tela o único objeto? comum. Neste sentido, se reforça o caráter real do laço com a tela, único acesso a este mundo globalizado. Vemos como as crianças fazer distintos usos dela. As identificações são diversificadas, dos desenhos americanos aos japoneses que muitas vezes são utilizados nas terapias, inclusive com autistas, que também estão imersos nesta questão. Depois passam a usar o celular, que passa a ser um apêndice fundamental do sujeito e posteriormente o computador. As crianças e adolescentes se fecham em seu espaço onde sua relação com o mundo é determinada por isto.  Isto se encontra mais presente em civilizações orientais onde a relação do sujeito com o mundo é definida por normas muito exigentes que podem produzir uma separação com o mundo e um afastamento de todas as normas sociais. No entanto cada um resolve de uma maneira.
>Silva: Seria o contrário na segregação?
>Laurent: Diz que há vários processos de segregação: fechar-se em sua casa e depois se ressocializar-se ou uma desagregação posterior, há segregação econômica e social, por um lado e segregações que produzem invenções, como o caso dos hikikomoris. A pressão social japonesa não é de segregação, trata-se de uma exigência de inclusão a todos o níveis, exigência de normalidade inclusiva que produz efeitos de reação que pode ser muito fortes.
Laurent então faz uma articulação entre o virtual e as adições e que é necessário tato parental para regular essa relação dos filhos com as telas. Novas classes de negociações na vida cotidiana dos pais. É necessário a regulação de um gozo real a partir do que há no mundo virtual.
Ø  Silvia: Existe nas neurociências um debate importante em torno da inteligência artificial. Que lugar ocupa a criança neste debate?
Ø  Laurent: A criança é agora um campo de batalha entre as neurociências e os pedagogos. Estes, sempre quiseram ocupar-se das crianças desde o Renascimento, quando os jesuítas o fizeram para conquistar o coração das mulheres, estas, causa de um amor divino. Atualmente os pedagogos estão ao lado das neurociências que tem algo a ensinar-lhes. Não há que confiar estritamente na invenção ou na criatividade da criança, como se fazia, senão também há que respeitar o que é a repetição, que permite imprimir no cérebro as atividades levando à fixação da aprendizagem. Esta chave da aprendizagem é fundamental porque, por exemplo, em certa época, ao fixar-se nas esperanças da imaginação se havia reduzido o interesse por aprender realmente as matérias. Com o acento posto por Lacan sobre o simbólico do real, fez que nas questões de reformas da universidade e da escola, entre aquelas pessoas inspiradas por Lacan, Jean-Claude Milner- que foi conselheiro do Ministro de educação, insistiu que havia que aprender passando pela lógica de um discurso para entrar na estrutura complexa do Outro simbólico e não apoiar-se somente nos poderes do imaginário. Havia um real-simbólico das distintas matérias. Isto é deslocado ou destituído com as neurociências e teremos debates acerca de como colocar o estatuto da criança neuronal, seu lugar e sua articulação em competição com a criança objeto “a”. Sem dúvida teremos coisas para discutir com nossos colegas das neurociências.
Ø  Quanto a inteligência artificial, importante ser retomada. Trata-se de algo fundamental do Google, da Amazon, do Facebook. Nas últimas Jornadas da Escola da Causa freudiana, tivemos uma discussão sobre isto com um responsável do Google e um do Departamento de Inteligência Artificial de Alfabet, Samy Bengio. O que nos interessa é que os humanos não aprendem como as máquinas, não temos acesso a muitos dados enquanto que a máquina tem acesso a milhões de dados que permitem fazer diferenças muito grandes. No entanto, mesmo com poucos dados, aprendemos coisas extraordinárias. Uma criança não para de ter acesso a coisas novas de manhã, a tarde e a noite diante da tela ou com seus sonhos. Então há uma relação com um muito. Isso nos interessa. Há algo que o homem não tem acesso como muito, que é o que se relaciona com o sexual, até os Don Juans não se trata de muito, senão do múltiplo que é diferente. Trata-se de uma relação entre o Um e o múltiplo, o Um do gozo e o múltiplo do parceiro. O que se pode extrair disso do lado do parceiro do gozo, isto o diferencia da máquina: o modo de aprendizagem de um sujeito humano que não aprende, encontra na contingência, encontra parceiros que deixam rastros inesquecíveis que depois se repetem de maneira tal que podemos dizer que do lado do sexual não se aprende nada. No caso do sujeito humano, não é o modelo de aprendizagem das neurociências que nos levam à repetição, não é o acúmulo de dados, mas sim a contingência que ao deixar marcas, nos fazem repetir.