Espaço Arte, Cinema e Psicanálise: "O Amante" - comentário por Regina Osório



Este belo filme Baseado no romance O Amante de M. Duras será o cenário de nosso debate hoje aqui. Para nossa conversação vou privilegiar, no interesse da Psicanálise, A Literatura de M. Duras, sua escrita - “Duras prova saber sem mim o que ensino”, escreve Lacan a lhe render uma homenagem. (1) 

Escrever para Duras era um desejo, uma Vocação que reconhece desde menina. E, é das experiências da infância e adolescência que decorre toda sua obra, melhor dizendo, suas lembranças infantis são o fato de ter escrito uma obra e que obra!!!

M. Duras é o pseudônimo de Margarite Donnadieu, seu verdadeiro nome. Nasceu em 4 de abril de 1914 na cidade de Ho Chi Minh, Saigon, numa colônia francesa, sul do atual Vietnan. Autora de diversas peças de teatro, novelas e filmes, seu trabalho literário foi altamente reconhecido e se engaja no movimento chamado "nouveau roman" e no pensamento existencialista.

Duras foi roteirista do filme "Hiroshima mon amour" de Alain Resnais (nouvelle vague) em 1960. Dirigiu o premiado filme "India Song", filme de 1976, e o livro o Amante escrito em 1984 ganha o prêmio Goncourt de literatura para ser filmado por Jean Jacques Annaud em 1992. E morre em março de 1996 em Paris. Este livro foi escrito já com seus 70 anos, quando todos da família já haviam morrido. 

Numa entrevista concedida a Sinclair Dumontais,(2) ela diz:
“é certamente o medo da infância que conto em O Amante, aquele medo de meu irmão mais velho e a loucura de minha mãe que me fizeram escrever. A petrificação dos sentimentos diante da força do outro, descobrir, sob o rosto calmo da mãe, uma torrente, um vulcão ou pior, uma ausência, o gelo que já não se move e que nos faz berrar, gritar de medo. A escrita foi a única coisa à altura desta catástrofe infantil.” 

Ao ser indagada sobre o poder exorcizante ou neutralizante da escrita literária, ela responde: “Não, a escrita não é uma maneira de conseguir viver, é simplesmente uma maneira de viver. Nem todos podem escrever ou fazer literatura, essa vida não é para todo mundo. Alguns morrem por ela. Mais do que uma maneira de viver, a literatura é uma maneira de morrer, de morrer para si mesmo.” 

Como nos diz Leyla Perrone-Moises, esta “morte de si mesmo” é o oposto de uma biografia escrita como afirmação do ego mas sim, é a possibilidade de todas as infidelidades ao factual em proveito de uma verdade maior, afetiva e poética.

Aqui reconhecemos o que Lacan nos diz no Seminário 23, o Sinthome, a linguagem nos leva mais além. A letra cifra o sujeito que de início é apenas uma suposição, suposição sempre entregue a uma ambiguidade, marca o sujeito que não é apenas duplo, mas dividido, divisão esta que instaura o Real e assim, a verdade de cada um, só pode se meio-dizer.(3) 

Ultrapassar a morte de si mesmo é o que a linguagem oferece, possibilita, sustentando o sinthoma. Apenas a arte toca o sinthoma. No caso de nosso livro, o Amante, se os personagens e os fatos são verídicos, a escrita literária os transfigura e transcende. Esta ultrapassagem se dá através da arte, da linguagem como Poesis!! Caminho que deve seguir todo processo analítico! 

Este livro é considerado o mais autobiográfico da autora, M. Duras escreve tecendo sua singularidade. 

A narrativa desliza da primeira pessoa, a velha que se lembra, à terceira pessoa, a menina, sempre transformada em imagem "aos quinze anos, eu tinha o rosto do gozo e não conhecia o gozo... tudo começou deste jeito para mim, por este rosto visionário, extenuado, esses olhos pisados antes do tempo, antes da experiência... é a travessia do rio como de hábito, mas é no curso desta viagem que a imagem teria sido destacada, subtraída ao conjunto como poderia saber da importância daquele acontecimento" esta imagem da travessia foi omitida, foi esquecida. Entorno deste recalque romancia. 

Entendemos que esta imagem fundamental na escrita deste romance, de fato não foi subtraída ao conjunto, ela não teve registro!! A narrativa se desenrola em torno de uma série de imagens onde a ficção como enredamento do simbólico sob o imaginário possibilita a escrita da imagem perdida. 

Como ela diz "devia haver uma foto deste dia!" Assim a imagem que lhe é capital do acontecimento marcante, esta travessia no Mekong, não é descrita de imediato. Esta imagem que falta vai se tecendo na Ficção enredando as lacunas das lembranças. "... tenho quinze anos e meio, uma balsa desliza sobre o Mekong... é a imagem da adolescente debruçada no parapeito da balsa, uma aparição incongruente... uma imagem perversa misto de sedução sexual e de inocência, que reúne índices de toda família; o vestido de seda quase transparente que fora de sua mãe, o cinto de um irmão e os sapatos, devia estar usando aqueles famosos sapatos de salto alto em lamê dourado. Não são os sapatos que compõe o que há de insólito, de inaudito na aparência da menina,... a ambiguidade da imagem está neste chapéu." Tecendo a imagem da menina, a narradora vai descrevendo a vida decadente da família e principalmente o estado de desespero com que vivia sua mãe que neste deserto existencial, permite que a filha saia com esta roupa de prostituta, e este chapéu masculino.

O chapéu masculino que usava, nos remete a função paterna, ausente, assim como a alusão de que como homem da casa, lhe cabe a função de trazer dinheiro para casa. Escreve: “de repente me vejo como outra, como outra, seria vista de fora, posta a disposição de todos os olhares, na circulação da cidade, dos caminhos, do desejo”.

Margarite criticou o filme de J. J. Annaud por este ter apresentado esta imagem completa desde a primeira cena. Sem dúvida ele fez da menina uma Imagem encantadora mas desprovida do espanto e do fascínio, que as referências progressivas do texto suscitam ao leitor. Arte de Duras. Duras escreve outro livro “O amante da china do Norte” onde pretendia mostrar como o filme deveria sido feito, realçando os Opostos as ambiguidades dos acontecimentos. Amor/ ódio/ prazer/ tristeza... 

A menina se entrega ao desejo, “na limousine está um homem muito elegante que me olha... eu poderia me iludir, acreditar que sou bela como as belas mulheres, como as mulheres olhadas, porque me olham muito... posso me tornar tudo o que quiserem que eu seja, e acreditar nisso. Já estou ciente... sei que o problema está em outro lugar... Há mulheres belíssimas, elas não fazem nada, aguardam... essa omissão das mulheres em relação a si mesmas sempre me pareceu um erro”. 

“Não era preciso atrair o desejo... ele já estava ali desde o primeiro olhar ou jamais teria existido. Ele era o entendimento imediato da relação de sexualidade ou não era nada... isto também soube antes da experiência” 

“A menina agora terá que enfrentar aquele homem, o primeiro, aquele que se apresentou na balsa. Ela diz, preferia que você não me amasse,... ele se sente só no amor que sente por ela." Ela está onde deve estar, deslocada. "Sente um leve medo. A partir da ignorância dele, ela sabe. Coloca o dinheiro no lugar do amor que sente por ele e escreve o gozo sexual como ser levada ao mar, la mère a mãe “o mar sem forma, incomparável”. 

A presença da mãe e seu desespero, invade e podemos dizer que é um objeto de amor assim como de horror, durante toda narrativa. O amor pelo homem, ela subestima ao longo de sua ligação com ele, atribuindo seu próprio comportamento à pura sensualidade, ganância e pervercidade, este sentimento vai ter seu reconhecimento só depois. 

A posteriori, em uma das últimas cenas do filme, uma forte emoção a faz cair em pranto. O sentimento sempre reprimido eclode ao escutar uma valsa de Chopin em pleno mar, já distante dele, (o amante) quando parte para Paris, abandonando Saigon e tudo que lá viveu. “De repente não tinha certeza se o havia amado com um amor do qual não se apercebera porque tinha se perdido na história como a água na areia e agora ela só o reencontrava neste instante em que a música se lançava ao mar” (la mer, la mère?) 

Como ler estas frases? Talvez como um novelo: para onde confluem ou de onde partem os diversos fios que percorrem e atam a obra de Marguerite Duras. Estas frases, fazem nó.(3) 

“Por elas perpassam imagens e ruídos. Nela se lê a mãe (maman), o amante (m’amant), a mão (ma main). Nela se lê o gesto da mão que escreve (j’écris), mas igualmente o grito (je crie). O grito de quem, de quê? Será o grito primordial do bebé que chora? O grito da mãe, lutando em vão contra as águas do Pacífico? (cf. Uma barragem contra o Pacífico, Difel, 1988). O grito do homem em desespero de amor, como em Índia Song(1975)? Ou simplesmente o grito de um corpo marcado para sempre na pele e na carne pelas farpas da linguagem? Eu te amo, eu grito. Eu amo seja quem for que ouça que eu grito (je crie), que eu escrevo (j’écris

Há um mistério no corpo falante (Cf. Lacan, Encore, op. cit., p. 165). Pela mão que escreve, ele se torna audível, como grito; legível, como letra. O gesto de escrever é singular. E é pelo «singular da mão» (Cf. Lacan, «Lituraterra», Outros Escritos, 2003, p. 20) que se pode desenhar um litoral entre o corpo e a letra. Não há literatura sem letra. Não há letra sem escrita. Mas não há escrita sem a força do corpo. (Cf. Benoît Jacquot, Écrire, 1993). E é dele, do corpo, que nasce tanto a literatura como o erotismo: veredas que atam e perfazem, pela mão de Marguerite Duras, uma vida, uma obra, um nó singular. 

A resposta, porventura o segredo, está numa frase. Uma única frase de um pequeno livro dedicado a Yann Andréa, o companheiro dos últimos anos de vida da escritora. Em francês «pour Yann» também se pode ler como sendo: «para nada» O livro se chama: É tudo. Tudo e nada. Eis a frase, resposta de Duras; Ma main, elle écrit (Marguerite Duras, C’est tout, P.O.L, 1999, p. 53) 

1- “que a prática da letra converge com o uso do inconsciente é tudo o que testemunharei, redendo-lhe homenagem”, em Homenagem a Margarite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, trad. José Martinho, em Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, Lisboa, 1989.
2- Texto publicado no Cahier Renaud-Barrault n.52 Gallimard 1965.
3- Miller ornicar n.34 1985.
4- Posfácio por Leyla Prrone-Moises, ed Cosac Naif.
5- Revista Caliban, Felipe Pereirinha, 2016.


Apresentado pela psicanalista Regina W. De Faria Osório
Rio de Janeiro, 28/04/2018.