[1]“Uma interpretação da
qual se compreende os efeitos não é uma interpretação psicanalítica”.
J.Lacan [2]
J.Lacan [2]
Lacan formula que a interpretação deve ser
enigmática, ambígua, equivoca, ou seja, seu sentido próprio deve ser reduzido,
favorecendo assim o desenrolar da associação livre do analisante. Dizer que a
interpretação deve ser oracular significa que ela deve operar para o sujeito
como um significante sem referência ao qual ele virá agregar sentido. O oráculo
era, na Antigüidade, uma divindade que respondia a consultas e orientava o
crente, por meio de uma palavra ou sentença à qual se atribuía grande
autoridade. Essas frases ou jogos de palavras eram sempre enigmáticos,
convocando à interpretação. A interpretação deve provocar no analisante questões,
tais como: “o que isso quer dizer?”, “o
que ele quis dizer?”, “o que ele deseja
dizer?”, uma vez que o desejo do Outro
está em questão. A interpretação não é
uma explicação nem tampouco uma descrição, uma demanda ou uma aspiração. Ela não conhece a dúvida, ou o mais ou menos.
É apofântica, ou seja, um enunciado que pode ser falso ou verdadeiro. Sabemos
que a interpretação de textos, os religiosos, por exemplo, faz parte da nossa
tradição cultural, bem anterior à descoberta da psicanálise. Observamos que a
impossibilidade de chegar a conclusões certas ou garantidas redunda em escolas
ou seitas hostis entre si. Inicialmente para Freud, interpretar era decifrar os sintomas e defesas que se contrapunham a
um desejo. A decifração do sintoma produzia sua eliminação, demonstrando-se a
validade desta por meio de um deslocamento que se operava no real. De que
maneira deve ser a intervenção do analista para obter um efeito no dito do
analisante? Como fazer uso do poder da palavra para que ela tenha regule gozo
do analisante. São algumas das questões
que levantarei nesse trabalho sobre a sessão analítica.
A interpretação
visa o real. A interpretação deve incidir sobre a causa do
desejo. Isso quer dizer que o psicanalista em sua prática demarca o sujeito num
estado de divisão. O analisante faz a experiência de sua divisão, ligada ao
reconhecimento do inconsciente como tal. Lacan relaciona a operação
constitutiva do sujeito ao mecanismo da alienação, em que o sujeito é
representado por um significante para outro significante, sendo portanto,
dividido. A interpretação analítica pressupõe sempre um ”você não sabe o que
está dizendo”, ou ainda, “o que você está dizendo vai além do que você sabe
disso”. É o que Freud conceituou como inconsciente no sentido do recalcado.
Para Freud tratava-se, a partir dos ditos do paciente e dos elementos de seu
discurso, de uma produção de uma substituição, de uma decifração ou tradução.
Nas formações do inconsciente temos um texto a ser decifrado. No início do
ensino de Lacan, a fala é pensada como vontade de dizer e tratada pelo
deciframento. Nesse primeiro momento havia, para Lacan, a primazia do
simbólico. A partir do Seminário XX,
Lacan se afasta da concepção da linguagem como comunicação, separando a fala de
qualquer sentido ou dialogo. Jacques-Alain Miller distingue no ensino de Lacan
a interpretação que visa o deciframento daquela que visa à desarrumação. Como
deciframento, ela diz respeito ao recalcado e ao retorno do recalcado;
refere-se à censura.. Por que a interpretação como deciframento não basta? O
paciente inclinado a sonhar, acredita em vão que uma análise seria um puro
deciframento. O saber do inconsciente é utilizado pelo sonho para produzir um
mais de gozar inadvertido pelo sujeito: gozar da privação da felicidade fálica.
A interpretação como desarrumação corresponde
ao que Freud chama, no “Eu e o isso”, de inconsciente não
recalcado. Já em L’Etourdit, Lacan postula a interpretação como equívoco como aquela
que faz vacilar as identificações. Tem valor de enigma, e aponta para o real em
jogo na experiência, portanto para aquilo que está além do sentido. A
experiência do real no tratamento analítico quer dizer que não há somente o
sentido, somente a verdade com seus efeitos variáveis. Trata-se de uma desarrumação
da defesa, que é sempre um arranjo de gozo e tem a ver com a economia
libidinal. Isso introduz o falasser como algo que vai além do inconsciente. No
seu último ensino, Lacan constata que não existe real senão excluindo toda
espécie de sentido. Ele desloca desse modo a problemática do inconsciente para
o real, ao dar uma orientação à fuga do sentido a partir da função do limite. O
limite não é aquele da proibição, o limite do real é o que ex-siste ao
ciframento do inconsciente devido ao impossível ciframento da relação sexual.
A interpretação pode encontrar seu limite quando o gozo não
se deixa por em palavras. O real que nos importa, o gozo do falasser, está
contaminado pela linguagem e a experiência analítica é um processo de saber
onde o gozo pode fazer obstáculo. Daí as crises no tratamento surgirem quando o
gozo impede o ganho de saber. O analista no lugar de objeto a, causa de desejo, funciona na abertura
do inconsciente possibilitando os efeitos no sujeito, para além dos obstáculos
imaginários.
Fragmentos de um caso clínico. Um sujeito de 47 anos procura análise queixando-se de não
conseguir conquistar mulheres, de que elas não se interessam por ele. No trabalho, como acentua a cada sessão, ele
não vê problemas, considera-se realizado. Porém, os colegas e a família o criticam como “um solteirão”. A
escolha da analista é determinada pelas
insígnias do feminino: ele diz que a mulher é mais perspicaz, que elas são
melhores profissionais. Acha meu nome forte, e me diz: “você quis me ouvir”.
Conta que falava sozinho, motivo de deboche dos familiares. Relata uma série de
tentativas fracassadas de conquistar mulheres, pois elas não passam do primeiro
encontro. O que se repete? O paciente se queixa de que apenas ele procura as
mulheres. Intervenho, após vários relatos deste tipo, para lhe perguntar porque
ele não pode insistir, visando o reconhecimento do seu desejo. Ele concorda
dizendo que esconde mesmo seus sentimentos. Num destes encontros, após um
pequeno envolvimento, a mulher o deixa. Ele se surpreende, dizendo-se usado:
“Como ela me deixou após se envolver comigo?” Esta é a formulação de seu
enigma perante o Outro sexo. A mãe o compara com o irmão: bonito, esperto,
sacana, bem diferente dele que ela qualifica de puro e ingênuo. Coloca-se como
“objeto de gozo” para essa mãe. A mãe,
Outro consistente e absoluto segundo Lacan, é para o paciente uma referência
constante na sua fala. Bastou que ela lhe dissesse que ele estava gordo para
que ele saísse para comprar remédios para emagrecer. Ele descreve os efeitos desse remédio como
agressivos, tendo no entanto dificuldades para localizar aí esse Outro materno
devastador. A mãe é quem diz: onde, quando e como. O dito do sujeito é: “foi o
remédio que me agrediu, que me fez mal”. Intervenho, acentuando que ele teria
procurado tal agressão, ou seja, tomou os remédios para responder à demanda
materna. O ato analítico consiste em implicar o sujeito naquilo de que se
queixa. Ele se diz vítima de sua mãe, de sua família, porém o obsessivo se
confunde com o significante-mestre e, para entrar em análise, é preciso uma
certa discrepância com este significante. Dos cinco irmãos, o paciente é o único que ainda mora com os
pais, tendo se tornado o arrimo da família. Ele acredita que somente o
casamento o salvará. Aponto aqui para o avesso: “é o casamento com a família
que o afasta das mulheres”. Ele se encontra embaraçado com o falo, submetido à
fala da mãe, que diz que qualquer mulher com que ele se casar irá traí-lo e
explorá-lo. A depreciação que o obsessivo dirige ao objeto de amor é uma
condição própria do desejo. Após estas
sessões, ele liga dizendo-me que não terá dinheiro nos próximos três meses para
fazer análise, pedindo-me para retornar depois. Insisto em querer ouvi-lo e
proponho que venha quinzenalmente. Na sessão seguinte, conta sonhos eróticos
dos quais jamais falara antes, acrescentando que preferia procurar
“profissionais” para sua satisfação sexual - ele
prefere pagar para não se aborrecer.
O sujeito passa então a relatar os acontecimentos da sua vida,
dizendo que jamais pensara que falaria dessas coisas. Isto marca uma nova
afirmação de seu pedido de análise. A analista pode introduzir o sujeito num
acordo entre o dito e o dizer, para que possa
chegar a dizer o que deseja. No
início da análise, para que a retificação subjetiva ocorra, são necessários
três tempos: uma afirmação: “eu quero análise para poder me casar”; depois
necessariamente uma anulação desta afirmação: “ele não quer pagar a análise
para não se aborrecer”. Insisto em ouvi-lo e acontece então, uma anulação da
anulação, e a seguir o relato do que o envergonha. O desejo comporta em si um momento de não
desejar e as palavras podem ter peso e preço. Trata-se de uma demanda de
análise de alguém que sofre com seu sintoma e é chamado a reconhecer a parte
que lhe compete em seu sintoma. O sujeito encontra-se fixado na posição de
objeto; houve no entanto uma perda de
gozo que permitiu que ele iniciasse sua análise. Se a mãe o explora, ele pensa
que as outras mulheres também o farão, tal como sua irmã que explora os homens,
mente, engana e envergonha a família. O sujeito se assusta de estar revelando
estas coisas, porém as conta como “um presente para a analista”. São alguns dos
efeitos de interpretação capazes de ocorrer na sessão analítica pela
instauração da transferência. Diante de
sua dificuldade de me contar isso, pergunto se ele tem vergonha da sua família.
Ele responde que sim, mas diz ter decidido falar sobre isso. Teme que, ao falar
disso, corra o risco de ser igual aos familiares. Ao se perguntar: “Quem sou eu
para o Outro?”, ele encontra como resposta: “Sou explorado, sou usado, um
‘nada’ para o Outro”. Teme se aproximar de qualquer mulher porque elas podem
ser como a irmã ou a mãe que o rejeitam, debocham dele e o exploram. Trata-se de
um gozo de deixar-se explorar, deixar-se ser usado. As mulheres estão marcadas
com o signo do desamor.
Concluindo, vemos que para mudar a posição diante do desejo do Outro, o sujeito
deve ceder parte de seu gozo. Podemos
dizer que se algo da pulsão não muda, o que se espera do trabalho da análise é
um savoir y faire, um saber fazer do
sujeito com seu sinthoma.
Referências bibliográficas:
1. Miller, J.-A. La experiencia de lo real en la cura
psicoanalítica. Paidós. Buenos Aires, 2003.
2. Morel, G. “Cuando el
inconsciente no interpreta”. Intervención à la IXéme Reencontre internacionale du Champ freudien, Buenos Aires, Julho de 1996.
3- Miller, J.-A. Lacan elucidado. Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 1997,
especialmente o capítulo III, “O método psicanalítico”.
4- Miller, J.- A. “A ‘formação’ do analista” . Em: Opção
lacaniana nº 37, Edições Eólia. São Paulo, setembro de 2003.
[1] Escolhi trabalhar o tema da sessão analítica pelo viés
da interpretação e seus efeitos no analisante, a partir do estudo que realizo
sobre esse tema tanto nos cartéis dos quais participo, como das discussões que
se desenrolam no Seminário Casuística da
EBP-Rio, sobre a construção lacaniana de casos clínicos.
[2] Lacan, J. “Réponses à des étudiants en
philosophie”. Em : Autres écrits, Seuil. Paris, 2001, p. 211.